24.12.09

O que se aprende com os clérigos


Um bispo anglicano dizia, com a naturalidade de quem ensina o catecismo às criancinhas, que nestes tempos de crise profunda os pobres e desvalidos podem subtrair mantimentos do supermercado sem prejuízo do perdão divino. Um bispo lusitano, encafuado no vetusto conservadorismo da santa igreja católica, anunciava que o casamento entre homossexuais era um atentado à família. É por isso que, nas raras vezes que tenho que frequentar missas (funerais e missas de sétimo dia), fico muito atento à oratória dos curas. Aprende-se muito. Normalmente, aprendo a antítese das palavras ditas nas homilias.

Sobre a revolucionária ideia do bispo anglicano: é dramático o estado de necessidade das famílias a quem a crise degolou os já parcos rendimentos? Concordo. Esse é o pretexto para se branquearem furtos em supermercados, para que essas famílias possam saciar a fome? Discordo. Já que tanto se deifica o papel do Estado, de um Estado que muitos querem cada vez mais omnipresente, que a factura do assistencialismo seja endossada ao generoso Estado.

Admitir furtos ocasionais é uma perigosa ladeira descendente sem fim. O mal está em admitir um começo para as saídas sub-reptícias de supermercados sem se pagarem os víveres. Tudo começava com um punhado de bens essenciais. Um dia destes, vinho de primeira, chocolates opíparos, gelados gourmet, sabe-se lá mais o quê, seriam subtraídos às prateleiras dos supermercados sob pretexto da míngua de rendimentos por culpa da terrífica crise. Tudo começava com gente carenciada. Um dia destes, oportunistas falsamente necessitados estavam a sair à socapa dos supermercados com mantimentos roubados. E um dia destes, nada teria a protecção da propriedade garantida. Se uma pessoa necessitada quisesse viajar para longe, quem se podia opor a que ela não pagasse o bilhete de comboio ou, em última instância, pegasse num carro que não é seu para se deslocar até ao destino?

Eu sei que por estes dias em que os adoradores das heterodoxias económicas andam de peito inchado, convencidos que as suas profecias se realizaram com a crise em que estamos, defender o direito de propriedade é uma heresia. Mas corro o risco de ser bota-de-elástico. Prefiro a estabilidade dos direitos do que normas voláteis que apenas alimentariam o caos. E quem se pode livrar das adversidades do caos? Gostaria de saber a opinião dos esquerdistas radicais – e do bispo anglicano que teve a peregrina ideia – se alguém trespassasse a sua propriedade. Não vale a alegação de que não são endinheirados; o tempo das nacionalizações ficou enquistado na poeira do febril PREC e ser rico não é crime (não é, pois não?). Se tanto se enamoram da sacrossanta igualdade, como defendem que os ricos possam ser atropelados nos seus direitos de propriedade só por serem abastados?

Sobre o bispo viciado no habitual conservadorismo de sacristia da igreja católica: não adianta o diálogo de surdos com quem está aprisionado em quadros mentais muito estreitos. Ou, para ser condescendente, nos seus quadros mentais. Talvez estes preclaros clérigos pudessem perceber que a sua mundividência não é a única forma de olhar para as coisas. A batuta do tempo marca o novo compasso que exige a renovação da visão do mundo. E nem parece acertado cobrir a indignação com o manto da ciência quando invocam a antropologia para atestar o equívoco de admitir que dois homossexuais se possam casar e formar família. Primeiro, a antropologia não é imóvel perante as andanças do tempo. Segundo, se se querem agarrar à ciência como tábua de salvação da inércia dos seus dogmas, deviam incorporar outros estudos que mostram que a homossexualidade não é doença e que as crianças adoptadas por casais homossexuais são tão normais como as demais.

Que raio: custa admitir que outras pessoas tenham preferências sexuais diferentes das nossas? Podemos-lhes negar as mesmas regalias legais que sancionam a opção de duas pessoas serem uma família? E não venham com obtusos argumentos que são apenas uma ilustração da inércia do tempo, quando sugerem que desde tempos imemoriais o casamento é sinónimo da união de pessoas de sexos diferentes. É que a homossexualidade já foi diabolizada em tempos, criminalizada, vista como doença. Mas não hoje. Se dois homens ou duas mulheres vivem juntos e são família, por que não se podem casar? Os monopólios são percursos que levam a destinos fatais.

1 comentário:

Milu disse...

Venho desejar-lhe um Natal verdadeiramente feliz, cheio de saúde, o nosso bem mais precioso, na companhia de quem lhe é mais querido.
Festas felizes!