23.12.09

O que faz sentido (prontuário surrealista)


"Isso explica aquele curioso caso, tantas vezes ocorrido na história, de um homem que julgamos ninguém, apagado e nulo, nos surgir de repente mestre de uma geração ou senhor de um país." Fernando Pessoa, Quaresma, Decifrador

Na interminável procissão da indigência mental, o homem insiste na sua soberba irritante. Perante a complacência do séquito que se arrasta atrás de si, inebriado com a prosápia de um parlapatão que parece hipnotizar os crentes. As palavras saem todas ao contrário, ou como se fossem tiros que erram sempre no alvo. E aquela sobranceria que vem, a espaços, entrecortada por cínicos sorrisos triunfantes – como se a nota de humor rasteiro fosse a sentença que determina a derrota dos opositores –, resgata toda a pureza da sua indigência mental.

Dir-se-ia: nunca um sistema que escolhe os mandantes através do sufrágio dos representados foi tão lídima expressão de uma gente. Nunca tanta mediocridade junta representou o espelho de uma gente. Mandam as convenções, e o fair play democrático, que se aceitem os resultados sufragados. Que se aprenda a conviver com os mandantes assim escolhidos. Mas lá dizia o homem, a meio da dialéctica com os opositores que insistem em morder nas suas canelas, "ninguém está acima da crítica". Precisamente. Ninguém, a começar por ele. E como ele se põe a jeito da crítica!

Esta é a terra onde despontou timoneiro de tão fraca têmpera. Escorregando para o já habitual pessimismo (que, sei-o, não é alimento para ninguém), quase diria que só nesta terra tal possibilidade teria valimento. Como há pouco avisara, em favor desta terra a seguinte conclusão: a tradução da possibilidade é um espelho da gente comum. Haverá maneira mais nítida de retratar a democracia quando os escóis cedem lugar a um representante da mediocridade dominante? O que faz sentido não é estender a rubra passadeira à elite que se empoleira no púlpito, ostentando um estatuto quase divino, lá em cima, no altar inacessível ao comum dos mortais. Depois queixávamo-nos da fractura entre os mandantes e os representados.

Talvez ao contrário do que se sugere, estes não são tempos de protuberância surrealista. Lá está: quando a indigência mental que tomou conta do leme é a imagem fiel da indigência mental que por aí abunda, quem pode anuir no quadro surrealista que os detractores sugerem? Tudo isto faz sentido. Porventura, um terrível sentido, não fosse dar-se o caso de as grandes decisões pertencerem aos decisores europeus. Sem o sabermos, continuamos entretidos a dar protagonismo a actores secundários. A gente que, fossem os parâmetros outros que não os da mediocridade, nunca passaria de um figurante anónimo. Talvez esta seja a marca de água do surrealismo circundante: o povo que, ao contrário dos mandantes, é impossível de mudar.

Soará a sobranceria um juízo tão implacável. Admito que há uma certa altivez na pose de distanciamento, da superioridade intelectual que se reivindica e que não condiz com um estatuto de humildade, quando se cola o homem à interminável procissão de indigência mental. E quando se comete a ousadia de acusar a gente comum de ser serventuária da sufocante mediocridade. Registo uma diferença, contudo: é que eu admito mesmo, sem pestanejar nem reagir com a habitual arrogância do timoneiro, que ninguém está acima da crítica. Posso admitir que o mal seja meu, que a miopia de análise me impeça de ver as coisas como elas são. Até prova em contrário, e até que me convençam que padeço mesmo de miopia, compreendo o estado em que as coisas estão. É tudo isto que faz sentido, mesmo quando a majestade intelectual – ó tamanha sobranceria! – se afadiga em explicar que é tudo ao contrário, que nada disso faz sentido.

Tudo soçobra na sua (só aparente) simplicidade. No fundo, o surrealismo habita em mim.

2 comentários:

Adson Cristian disse...

Paulo, gostgei muito do teu blog.
Gostaria, porém, de fazer uma ressalva à qual não me posso furtar: sou brasileiro e, gramaticalmente, falamos a mesma língua, mas confesso que ao ler teu texto percebi quão pobres de vocabulário andamos por aqui; o quão pouco conhecemos nossa língua. E olha que eu me considero (ou consideram-me) razoavelmente culto para a minha geração.
Parabéns pelo blog. E que alguém nos salve a língua portuguesa no Brasil antes que ela vire outro idioma.

PVM disse...

Caro Adson: muito obrigado pelo teu simpático comentário. Aparece quando quiseres!