4.11.09

A seita socialista (remake)


Apetecia-me dizer que as histórias de corrupção são todas tristes. Mas é ao contrário: há nelas um fogacho, mesmo que seja intermitente e tímido, que acende a candeia da mudança. Às vezes, é preciso um abalo telúrico arrasador para que tudo se erga do nada; a podridão de tudo exige uma terapêutica devastação. Só assim os corpos doentios são devolvidos ao lugar a que pertencem. Espera-se que, a seguir, os que não consigam sucumbir à tentação do enriquecimento por ilícitos meios se lembrem do que aconteceu aos que foram passar uma temporada ao cárcere.

Estamos neste estado comatoso. À vez, escândalos que envolvem as duas pernas do bloco central. Para que nenhum dos rivais se ria do outro, pois todos têm os seus particulares rabos-de-palha, os seus podres que envergonham. Desta vez caíram na rede dois influentes socialistas. Um já foi ministro e é (pausa para ganhar coragem para escrever a palavra que se segue) "banqueiro". O outro já foi secretário de Estado. Perderam as sinecuras políticas. Mas o segundo foi promovido ao muito compensador cargo de gestor público. O outro manda num banco privado que, julgo que em presságio do que estaria para acontecer, ganhou o cor-de-rosa como cor oficial. A tentação da ganância fê-los reféns da falta de escrúpulos de um empresário arrivista.

Não precisam de mo dizer: até prova em contrário são inocentes. Só que não há fumo sem fogo. Os indícios serão consistentes, ou não tinham ganho a qualidade de arguidos numa marosca tentacular que toca gente bem colocada em muitas empresas públicas. Também sei que a sensatez manda que não se confundam as árvores com a floresta. Os que se sentirem ofendidos pelo título deste texto (exagerado, na sua maneira de ver), aconselham que não misture um par de árvores adoecidas com a – dirão – esplendorosa floresta. Devo advertir que aquele título me foi sugerido pela reacção histérica de um consagrado socialista, o poeta Alegre.

Foi ele que vomitou corporativismo de seita, o sintomático corporativismo, quando se atirou ferozmente às fugas de informação dos tribunais para a imprensa. Às suspeitas dos dois camaradas de partido estarem envolvidos numa lamentável, comezinha operação de tráfico de influências, o poeta Alegre disse nada. O melhor é atirar poeira para os olhos dos incautos, desviando do essencial para o acessório. Mas não somos todos ignaros, como o bardo do regime acreditará.

É este corporativismo que coloca os seus fautores como padrinhos de seita. Os da seita, mesmo que estejam metidos em negociatas ilegais, mesmo que tenham sido corrompidos, devem ser defendidos. A seita está acima de tudo – até das leis que condenam quem for apanhado com a boca na botija, como apontam os indícios recolhidos na investigação policial. Não é a primeira vez, nem será a última, que somos testemunhas desta enternecedora protecção entre iguais. Vou pelo cinismo: já que tanto se critica o individualismo que nos desumaniza (é o que consta), esta protecção de casta é uma lição notável do contrário do individualismo. Devíamos todos aprender com o bardo do regime. Às malvas as leis, quando podem estragar a vida a um dos nossos. Que se apliquem apenas aos que não pertencem à seita.

Eu pergunto: isto que vai saindo para a imprensa não será apenas a ponta do icebergue? Estes escândalos, que metem gente que veio da política e que não olha a meios para enriquecer, são apenas o que se sabe. Qual é a dimensão do que permanece às escuras, sem que as autoridades cheguem a travar conhecimento com negócios feitos debaixo da mesa?

Regresso ao laivo de optimismo com que comecei. Temo que estivesse a pressagiar no vazio, uma ingenuidade irreprimível (concedo). Sabemos que as tortuosas curvas da justiça trazem despistes, quando a justiça factual escorrega diante de "expedientes processuais" que anulam provas que chegam ao conhecimento de todos. Até nisto só conseguimos ser aprendizes da Itália, no pior que a Itália oferece como exemplo de tentaculares clientelismos. Por lá, a justiça vai funcionando. As escutas telefónicas não são varridas para debaixo do tapete e os envolvidos em escândalos não prosseguem altivos. As escutas? Não passam de uma colectiva miragem auditiva. Aos penedos e às varas que fazem carreira na senda da abastança material passando por cima das leis, tenho a impressão que nada acontecerá.

Adenda: Para confirmar o sentimento de seita, o moço de recados da dita no Banco de Portugal (a constância personagem que ainda está à frente desta instituição) aplaudiu Vara por ter renunciado ao cargo no Banco Millennium. Com a seguinte sentença lapidar: "o sector financeiro precisa de bons exemplos". Importa-se de repetir?

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