30.10.09

Outra vez, beautiful people



Desafinado do modismo da publicidade continuo: é só gente bonita, como se houvesse um laboratório dos padrões de beleza que fogem da média da pessoa comum. Convenço-me que os publicitários estão convencidos que a beleza vende mercadorias. Talvez seja essa a explicação para que na publicidade desfile gente tão bela e só gente que arvora a beleza rara. Das duas, uma: ou andamos todos enganados quando líricos ensinam que é a beleza interior que conta; ou a publicidade é um mostruário ideal que só existe nas fantasias de muita gente que gostava de ter sido agraciada com uns pós de beleza.

Da beleza física diz-se que nos entra pelos olhos. E também se diz que a apreciação da beleza pertence ao subjectivo. Não digo que seja possível franzir o sobrolho às pessoas bonitas; elas não causam indiferença, deixam um rasto que se incendeia com a pulcritude que passeiam. A fealdade, quando é um emblema, deixa-nos atónitos. Aliás, a dicotomia belo-feio é expressiva da propensão inata para desviar o olhar para o que o fere (quando o racional seria que os olhos se desviassem do que os fere). Aos que se julgam feios, a fealdade dos outros é oportuna. No altar da relativização dos olhares, há quem ostente feiura maior. Nessa altura, até os menos feios irrompem com a sua beleza discreta.

As imagens da beautiful people tão esplendorosa, tão sorridente, numa suave insinuação da vida cheia de uma invejável leveza, são imagens aterradoras para quem não é insensível à beleza. Porque não há tanta fecundidade de beleza por metro quadrado. Andamos nas ruas e os olhos não vão vendados. Se algum retrato fidedigno é tirado, não é através da miragem da publicidade. É quando passam imagens mentais de alguma filmografia italiana – Visconti, Fellini, Pasolini, Antonioni. Filmes pontuados por uma impressionante carga de realismo. As pessoas vêm carregadas de feiura. Mostram uma rudeza rural. Mesmo quando os filmes são passados na cidade, onde se acreditaria que o civismo desse lugar à cortesia no trato. Aliás, os modos rudes, a antipatia com que o estranho é recebido, os rostos fechados em ausentes sorrisos, esfíngicos nos silêncios que se demoram na tela – tudo agrava a lavoura de fealdade desses filmes. Dir-se-ia que as pessoas se tornam mais feias pela repulsa das personagens que encarnam.

Há tempos andava distraído pelos canais da televisão quando parei, por instantes, num desses programas que, acreditam alguns, transporta a essência da democracia: uma espécie de reality show em que gente feia, mal amanhada e disforme sofre uma reciclagem aturada. Aquela gente tão sequiosa de contemplar alguma beleza no espelho quando nele se fita era transformada, pela intervenção de dedicados especialistas de coisa vã, em sereias apetitosas. Operavam-se verdadeiros milagres, se bem percebi a patranha e se não havia exageros nas fotografias dos candidatos ao belo quando ainda pastoreavam nos desagradáveis caminhos do feio. Dei comigo a pensar que seria mais fácil a alguém tornar-se numa desprezável, andrajosa figura. O desmazelo, o fermento da transformação. Seria atingida em menos tempo do necessário para operar o milagre da metamorfose de um feio num belo. Ah, como apetece resvalar para a feiura, quando por todo o lado o mediatismo totalitário nos encharca com aquela gente repleta de uma beleza imaculada, de uma beleza que soa a artificial. O mal é que o costume se enraizou e se cultiva a beleza que se inveja nos que se alçaram ao mais elevado altar da pulcritude merecedora de holofotes. Quando se desperta da anestesia, sobra a ingrata sensação de um espelho que não mente.

Para que interessa a beleza e a fealdade? Quando a primeira passa, enjoativamente, em anúncios de publicidade que salpicam a vida ilusória com um glamour digno dos cânones da sedução, apetece consagrar a fealdade. Em homenagem à gente comum que passa em esmagador contingente enquanto calcorreamos as ruas da cidade. Um desafio aos especialistas da publicidade: e se servissem apenas gente feia num anúncio publicitário, ressentiam-se as vendas da mercadoria? Se esse fosse o caso, capitulava, enfim: no imaginário, ambicionamos a beleza. A beleza como é retratada na publicidade. Essa é a beleza que, nem que seja pela inércia, deificamos. A mim quero chamar a beleza da feiura.

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