28.10.09

O estranho caso do padre septuagenário que guardava um arsenal dentro da igreja



Numa terrinha perdida no remoto Trás-os-Montes (Covas do Barroso) havia de tudo no refúgio da igreja. Desde artilharia pesada a explosivos. Uma quadrilha foi "desmontada" por uma competente brigada policial. O padre foi ouvido pelo tribunal. À saída, soube-se que vai esperar pelo julgamento em liberdade. Não me parece que esta justiça seja justa: e se em vez do padre fosse uma pessoa comum a dar guarida ao fartote de armas, em sua casa ou num esconderijo, ficaria solta até ao julgamento? Esperemos pelo comentário de Saramago.

As notícias sobre o curioso episódio são omissas quanto à serventia das armas – já lá vamos, que tenho uma teoria. Da maneira como andam as relações entre o Nobel da literatura e a igreja católica, não ficava surpreendido se alguns ratos de sacristia andassem entretidos a organizar milícias para tirar a tosse ao escritor. Para que se aprenda, de uma vez por todas, que ninguém brinca nem muito menos ofende a santa igreja. O pároco septuagenário, com idade para não andar a brincar aos salteadores da arca perdida, pertencia a uma milícia destas?

Já ouvi católicos (tão assoberbados pela virulenta campanha de Saramago contra a bíblia e deus), do alto da sua oportuna ingenuidade, a darem por assente a inocência do sacerdote. Dizem: é lá possível um septuagenário andar metido nestas andanças. Reforçam a convicção: um padre é comandado pelos mandamentos bíblicos. "Não matarás", é um dos mandamentos sagrados que os sacerdotes ensinam aos crentes; é ilógico que um servo de deus faça o contrário do que anda a pregar? Só pode ser uma cilada, um qualquer inimigo do padre que colocou as armas na igreja para o incriminar. Só pode ser, repetem os crentes incrédulos.

Outro ângulo da teoria (agora pela lente dos crentes incrédulos): se calhar, aquelas armas eram apenas para ir caçar javalis. São bichos coriáceos. Uma vez feridos, ficam possuídos por uma fúria letal. Que o padre tivesse artilharia pesada tem lógica: o javali atingido não só fica morto à primeira (e, portanto, não anda por aí a espalhar sustos nos bravos caçadores) como se dispensa a cansativa tarefa do esquartejamento do bácoro gigantesco. Só não percebo para que servem os explosivos. Não seria para limpar o sebo a Saramago?

Compreende-se a incredulidade dos católicos. Primeiro, a solidariedade corporativa (ou, em rigor, solidariedade de fé) impede de crucificar o padre sem provas inequívocas da culpa do homem. Sim, já sabemos que até prova em contrário não há culpados de crimes. E também sabemos que as provas têm que ser levadas a tribunal. Mas não se desorientem, ó católicos: não vale fazer generalizações, pois elas são sempre perigosas quando tropeçamos nas suas excepções. De que serve apontar as credenciais de um padre como porta-voz da palavra divina, se um padre é tão homem como qualquer um de nós?

Já que vão por aí, duas perguntas para contrariar a oportunista generalização em abono do homem da sotaina. Primeira: não há, pelo menos no mercado dos rumores populares, numerosas histórias de padres que vão espalhando a sua prole? E não há, lá para a América Latina, onde o esplendor da "teologia da libertação" viu a luz do dia, sacerdotes que dizem missa com imagens de guerrilheiros marxistas empunhando armas em pano de fundo, as armas que serão instrumentos da justiça poética que faz a improvável síntese entre Marx e Cristo?

Agora percebo as convulsões de Saramago com o cristianismo. Ainda não teve força para dizer ao que vem: padres desta terra, olhem para o exemplo da América Latina onde se prega a bondosa e, sem dúvida, pacífica teologia da libertação. Será o tal deus bondoso que povoa o imaginário do falso ateu Saramago? Já percebi: o deus da bíblia é maldoso porque recusa a violência; o deus pregado pelos teólogos da libertação é que é bondoso pois pega em armas para defender os desvalidos. A violência é boa se for divina e se vier tingida por uma causa – como dizê-lo? – "justa".

Será o padre de Covas do Barroso um discípulo de Leonardo Boff? Não sei se é apenas coincidência, mas o nome de família do padre é Guerra.

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