20.10.09

Da agricultura



Há duas imagens contrastantes que guardo do mundo rural por ainda onde campeia a agricultura. A imagem agreste, a que recolhi na vivência pessoal do contacto com a aldeia duriense onde tenho as raízes paternas e avoengas. E a imagem romântica que passa em jornais respeitáveis, quando a nova leva de proprietários rurais aparece em sedutoras entrevistas. O contraste: entre a rudeza dos homens que cuidam das terras xistosas encavalitadas nas escarpas do Douro; e as mãos imaculadas dos novos lugar-tenentes da agricultura em ensaio de modernização – como se fosse o derradeiro solfejo para alcançar a sobrevivência de uma actividade vegetativa.

Eu que, posso dizê-lo sem corar, sou cem por cento citadino e me faz espécie estar muitos dias exilado de uma aglomeração urbana, nunca me senti embebido na ruralidade da aldeia do meu pai e dos avós paternos. O problema não era a exiguidade do lugarejo; as estadias eram curtas e serviam para oxigenar. Era como se houvesse a necessidade de tudo limpar por dentro depois da prolongada rotina da cidade que, a certa altura, era asfixiante. Por sinal, a aldeia é encantadora – até já teve direito a espaço próprio num livro dedicado às aldeias pitorescas. A sintonia desfazia-se com a agricultura que irradiava de todos os poros. Os braços dos homens, de algumas mulheres até, sobretudo para tarefas sazonais com as vindimas, tinham serventia para a única actividade que conseguia espreitar à superfície.

Era então que a convivência com a força braçal das terras gritava no seu contraste. O rapaz tão urbano a dar de caras com gente rude, marcada pelas asperezas de terra difícil de amanhar como a dos socalcos durienses. Impressionavam-me as mãos dos trabalhadores rurais. Disformes, invariavelmente com lacerações cicatrizadas como se fossem as medalhas de que se orgulhavam em silêncio. As mãos quase sempre encardidas; queria acreditar que não era por falta de higiene, que eram os sedimentos da terra acumulados em anos a fio de porfiadas jornas de sol a sol, a terra em osmose com a pele e com as unhas, indistinguíveis umas das outras. A higiene aprendia-se nas escolas urbanas; depois, chegava à aldeia e os hábitos pareciam mudar num estalar de dedos, à distância dos cento e poucos quilómetros que a separavam do que entendera ser a civilização.

Das gentes nunca tive razão de queixa. De uma simplicidade desarmante, às vezes mostrando um rebaixamento que ecoava, talvez, pelas diferenças entre o rapaz que se instruía a caminho da universidade e aquela gente quase toda analfabeta. Incomodava-me a sensação do estatuto superior em que era colocado pela humildade que se confundia com o desejo de serventia com o seu quê de auto-humilhação. Os olhos cansados e os corpos rijos mas extenuados pelos anos sem descanso fitavam-se na degradação das roupas andrajosas que levavam para a lavoura e que não despiam quando repousavam na proximidade de um bagaço.

Estive largos anos sem ir à aldeia. E agora que lá regressei por um dia, notei que aquelas terras pararam no tempo. Dir-se-ia que o terceiro mundo vive a cento e poucos quilómetros da civilização que se ufana de pertencer à Europa tão avançada. Há casario novo, quase sempre a garantir um ingrediente de fealdade que retira a aldeia do mosaico de aldeias tipicamente lusitanas. Algumas terras ostentam a modernidade dos socalcos espaçados por onde passam as máquinas que diluíram as vindimas na sua feição tradicional. Mas as pessoas são como eram. Sofridas, humildes, andrajosas, mal falantes, com a mesma desarmante simplicidade. As botifarras que protegem os pés dos calhaus pontiagudos que emergem do terreno difícil, as mãos enegrecidas e marcadas pelos frisos das enxadas e pelas pedras removidas à força braçal, as rugas que emprestam um envelhecimento precoce às gentes, a pele tisnada pelo sol que ali se faz infernal.

Vira-se a página e os olhos esbarram em jornais e revistas que entrevistam os que descobriram o novo arroteamento das terras. Parecem o que são: forasteiros cansados da cidade que encontraram na calmaria do mundo rural o exílio para a redescoberta de um negócio. Forasteiros, acima de tudo. Neles não há os traços da gente que amanha a terra. Ao contrário, um certo glamour que encanta as mentes mundanas e as ilude para as delícias da vida rural. A agricultura é boa quando os mandantes se vestem a preceito e ordenam aos capatazes que dobrem os obstáculos severos que a terra difícil oferece. É a agricultura na sua feição simpática, a mostrar a sua mundana face.

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