1.9.09

Preconceitos benévolos


O preconceito é das coisas mais detestadas na modernidade em que estamos. Existe um preconceito instalado contra tudo o que ressoe a preconceito. E, contudo, não é preciso ser conservador para mostrar simpatia por alguns, particulares preconceitos (como nem é preciso ser a antítese de um conservador para exibir preconceitos, só que nunca admitidos preconceitos). Mas é desconfortável confessar um preconceito – ou, o que é pior, ser-se apanhado no alçapão do preconceito, com as voltas trocadas numa qualquer incongruência pessoal. Pomo-nos a jeito do dedo inquisitório de quem atira esse preconceito para o quarto escuro das coisas odiosas, como se fosse infundado, na modernidade em que vivemos, ser penhor desse preconceito.


Eu tenho alguns, na maior parte dos casos relacionados com palavras. Algumas são palavras proscritas. Impronunciáveis. Como se azedassem a boca de cada vez que a língua se desenrola para as proferir – ou como se o pensamento se irritasse de cada vez que passassem dos dedos para a escrita, com a mediação das teclas do computador. Há ali uma reserva mental que trava – a língua e o pensamento. De repente, ocorrem-me três palavras que por interior pudor não aparecem transcritas nestes textos: "Portugal", "país", e "Sócrates" (o nome do senhor que é primeiro-ministro).


Porventura isto dá pano para mangas a psiquiatras ou psicólogos (depende do ângulo de análise). Dirão que tenho problemas mal resolvidos com as palavras que instalei como preconceitos. Aos amantes da pátria, uma heresia a recusa em proclamar a ditosa palavra que é o nome da pátria. Será vergonha da pátria, ou apenas um voluntário pária imerso numa profunda crise de identidade? Naquela relação, há causa e consequência? Não me comovem os depoimentos de amor e entrega à pátria. E mesmo os poetas que consagraram as virtudes da portugalidade não me tocam com o ânimo que transpira das inspiradas estrofes que compuseram ao Portugal, ora musa, ora divindade. Há quem diga que o juramento à pátria se faz quando o tempo e a distância destilam nas saudades em que o corpo se arrasta. É no regresso, quando a fronteira anuncia os símbolos da nacionalidade, que os olhos marejam e as emoções soam, audíveis, na pele eriçada. Devo mesmo ser pária: nenhum sintoma destes me percorre quando termino uma viagem, curta ou mais demorada, pelo estrangeiro. Antes pelo contrário: uma irreprimível pulsão de recuar.


A maneira de pensar conduz o comportamento. A ideologia, mesmo que não seja um catecismo seguido acriticamente, fornece as balizas mentais que forjam a maneira de ser. O poético, lírico, utópico anarquismo é o pano de fundo. Para o anarquista, os países não fazem sentido. São uma camisa-de-forças que reduz a individualidade do ser a pouco mais que nada, dilui a sua essência. Se os países são uma abstracção tão aziaga para a espécie, eis o aluvião onde repousam os nutrientes do preconceito semiótico com "Portugal" e com "país" – pois que "país" (assim mesmo, com letra minúscula) é o conceito abstracto em que se encaixa "Portugal". (E, por maioria de razão, não devia "Portugal" perder o P maiúsculo?)


Agora um preconceito ao quadrado: escuso-me a revelar os motivos da recusa em compor as letras ordenadas do nome do primeiro-ministro do momento. Por higiene mental. Para não enxovalhar o filósofo grego que tem o mesmo nome. E por causa de um enorme cansaço de uma personagem que tenho como um embuste em avançado estado de aperfeiçoamento. Se há algo que me deixa inquieto, é a frequência com que a personagem me motiva a escrita. Invariavelmente, pelos piores motivos. De alguém de tão fraca jaez obriga a decência mental a recusar a pronúncia, escrita ou falada, do respectivo nome. Por temor que tanta indigência se contagie com a simples invocação do nome.


Para demonstrar preconceitos com palavras, acabei por as escrever. Derrubei as ameias, as altas ameias, que um pensamento teimoso tinha erguido. Ao escrever "Portugal", "país" e "Sócrates" contrariei um preconceito que, poderiam alguns ajuizar, me consumia no mais profundo do ser. Talvez a revelação do preconceito o tenha liquidado de vez. Ou, pelo contrário, agora que o desnudei faça sentido continuar a recusa em pronunciar ou escrever aquelas palavras. Sem que agora seja um preconceito.

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