25.8.09

Vox populi – não há quem a abafe?


Dizem que a democracia é o povo que ordena e os eleitos (por ele, povo) que governam. A teoria ensina-se desta maneira: a soberania é popular, o poder reside no povo, na convicção de uma mirífica igualdade. Mas é incongruente pensar que o povo – todo o povo – possa exercer o poder. Estaríamos mergulhados na anarquia, com o sentido negativo que as convenções pespegaram no termo – continua a teoria estabelecida. Por isso existe delegação de poder. Do povo nos governantes, eleitos para nos representarem. A democracia deve-se aproximar o mais possível do seu natural detentor. Daí que se discuta se a democracia deve ser representativa ou directa (ou, para alguns saudosistas de um império que ruiu vai para vinte anos, "popular").


Ainda com o estigma do salazarismo à perna, a sagração da democracia é feita todos os dias e as assombrações totalitárias dominam o quotidiano. Tal como se ainda houvesse o risco de resvalar para uma ditadura como a que nos oprimiu durante quarenta e oito anos. Todas as manifestações de "democratização" merecem aplauso obrigatório – ao menos por aqueles que habitam no lugar-comum do "politicamente correcto", os pastores do sistema central (referência a "bloco central") e os que reivindicam o exclusivo da democracia sem a saberem praticar por antinomia ideológica (as extremas-esquerdas).


Por estes dias de selvática concorrência entre os canais televisivos, a voz do povo destilada através de microfones é um dos esteios da qualidade e da intensidade da democracia. Por tudo e mais alguma coisa as televisões saem à rua e perguntam pela opinião do povo. Na sua variante mais recente, proliferam "tribunas abertas" em rádios, televisões e jornais onde o cidadão anónimo opina. É quando o disparate exala por todos os poros. Sempre ouvi dizer que o maior ignorante de todos não é aquele que é apontado por todos como tal; é o que se julga imensamente inteligente, sem dar conta da profunda ignorância em que vegeta.


Multiplicam-se os exemplos da voz popular que agride os sentidos. Andássemos atentos, a anotar todos os dias o relambório de falta de instrução de gente que tem os seus "cinco minutos de fama" na comunicação social, e tropeçávamos em matéria farta. Por ser fresco – e por ter sido o mote para este texto –, um exemplo recolhido ontem. Depois da catástrofe numa praia algarvia, com o desabamento de um leixão que matou quatro pessoas da mesma família, as televisões andaram em areais debaixo de frágeis falésias. A perguntar aos temerários banhistas (ou, dir-se-ia, irresponsáveis banhistas?) se não tinham receio que o mesmo lhes acontecesse.


Da amostra de gente que abriu a boca para o microfone, as respostas variavam: i) um estava consciente do risco, mas isso só acontece aos outros (versão "irresponsável em acção"); ii) outro nem sequer sabia que aquela arriba era perigosa, e outro nem sequer sabia da tragédia (versão "estou a leste do paraíso"); iii) havia uma senhora, muito senhora do seu nariz e das certezas que cuspia para o microfone, a debitar o seu laudo: como só estava uma placa que avisava para o perigo do local, não era proibido ali estar. E rematou: se fosse tão perigoso estar naquele sítio, o Estado devia proibir o acesso à praia (versão "imbecil de serviço"). Esta anónima levou a palma na exibição de supina ignorância. A pesporrência da senhora pôs-me a adivinhar se ela não seria daquelas vozes de protesto caso, um dia destes, o sempre interventor Estado decidisse vedar o acesso à praia. Daquela gente que vitupera a interferência do Estado e depois, quando se dá uma tragédia, se atira ao Estado porque se fosse mais pródigo em proibições a tragédia não tinha acontecido.


A fecunda voz popular é o termómetro da abundante agnosia dos detentores do poder. Correndo o risco de arrostar o rótulo de anti-democrático, eis uma profecia que corresponde a um pessoal desejo: que as televisões tenham pudor. E calem esta absurda e tão burra voz popular. Tenho a impressão que a democracia não se ressentia. E tinha um bónus adjacente: varrer a indigência faz bem à sanidade mental.

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