28.8.09

Da maior indignidade de todas

Falem-me de declarações que selam os direitos do homem – e repitam, em coro angelical, o intangível direito à dignidade da vida. Falem-me de deuses justos e bondosos, como é harmoniosa a sua mão que se pousa em nós. E falem-me de um sentido, um sentido que seja, para uma vida que definha, gritando bem alto toda uma indignidade que se fez reino apodrecido. Sei que são as coisas boas, as memórias consoladoras, as que animam um quadro onde as reminiscências se tecem na sua faceta bela. Sei que é isto que se deve sobrepor ao demais – a um corpo que carrega consigo a doença, desesperançado, amordaçado num sofrimento silencioso. Mas não ficam também arquivadas as imagens pungentes da dor letal que consome um corpo, deixando-o reduzido a uma massa inerte, sem vontade?


Não sei se importa saber se tudo isto faz sentido. Porventura é quando todo o impensável lirismo transpira pelos poros, encharcando a existência presente com uma humidade pegajosa. É quando leveda uma improvável ingenuidade que toma conta do horizonte. Fervilhando uma lancinante interrogação que se mistura com um desejo inverosímil: pudesse um homem escolher a sua morte. Pudesse ele lavrar um outro testamento que fixasse o como da sua morte. Para terminar de vez com a tremenda indignidade de ver pessoas a definharem no tempo, a terminarem apenas como distante imagem da intensidade que foram outrora.


Um testamento imaterial que um qualquer deus, se afinal existisse, teria que atender. Por uma vez que fosse, esse agora arquitectado deus obedeceria à vontade humana. Para asfixiar o sofrimento nutrido por uma dor surda – o sofrimento, a grotesca aleivosia dos putativos deuses que ecoam as tenazes de uma doença insidiosa. Oxalá voltasse a jurar solenemente a declaração dos direitos do homem, suprema impotência ou acidulada utopia quando ajuramenta a dignidade da vida. Mas de que serve a dignidade da vida se não há dignidade na morte?


A violência de ver alguém perder a vontade e a lucidez. De ver o corpo transformar-se numa massa inerte. O presságio da fatalidade que apenas está à espera do dia aprazado em que o corpo deixa de lutar e os olhos se encerram na justiça poética de quem renuncia como acto derradeiro, corajoso e sublime. Um acto de liberdade. Há os crentes de crenças várias que se entregam aos braços de uma qualquer entidade divina, ou de outra coisa qualquer, fiéis depositários de uma existência que se prolonga na sua imaterialidade. O sacrário do sofrimento que se alonga numa interminável morbidez é a caução para a apalavrada dimensão que se desprende da terrena existência? Mas, então, é necessário infligir tanto sofrimento a um corpo já mirrado?


As palavras que se balbuciam num sussurro imperceptível. A energia consumida pela dor, tanta que nem sequer forças se reúnem para verter as lágrimas que se debatem nas secas pálpebras. Os músculos tisnados pela letargia, mostruário da ausente vontade pela cedência às tenazes da doença que irrompeu, triunfante e traiçoeira. O olhar perdido no firmamento que já nem ele se discerne no que quer que seja. As mãos frias, tão paradoxalmente frias quando a canícula estival se abate sobre o dia e a noite. As mãos, a terminação dos braços que se resignaram à derrota no braço-de-ferro fatal. É já um corpo, só. Um, muito distante da frondosa existência que o foi outrora. A convocar, como nunca, as memórias que refulgem essa existência inteira. Como nunca se fizera notar essa sede retrospectiva; só então as pinceladas da sibilina existência se sobrepõem à indigna degradação do ocaso.


Que dignidade está espalhada neste mundo, na espécie que em sorte calhámos ser, quando se nos reserva o definhamento de nós mesmos a tal ponto que já o deixámos de ser – o eu voluntarista, ou eu pensante, o eu todo, inteiro? Não há desmerecimento maior que um ocaso de pungência demorada. Um ultrajante punhal que mata devagarinho e adia o fim assim incerto.

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