7.7.09

Gerações futuras


É salutar a profusão de "manifestos" a que ilustre gente tem emprestado o nome. Traz discussão de ideias para a praça pública, o que é preferível à modorra intelectual que é o trunfo dos medíocres. Com estes manifestos, as instituições são escrutinadas através do exercício intelectual de um grupo de cidadãos. A restante cidadania, convidada a reflectir sobre propostas e avisos deixados pelos contrastantes manifestos.


O melhor de tudo está na percepção de que a classe política – e, entre ela, a que tem as rédeas do poder – não pode ignorar o escrutínio de certas elites informadas e com acesso a canais de comunicação. Elites que sejam, ao menos contribuem para que a classe política – e, em particular, os governantes – não monopolizem a decisão. Sobretudo quando o que está em causa pode deixar um rasto de efeitos que se espalha pelas próximas décadas.


Há o manifesto dos vinte e oito: adverte que não estamos em condições de avançar loucamente para um lunático programa de investimentos públicos. Só por miopia – como o fez o novel eurodeputado da extrema-esquerda chique, Rui Tavares – é que se pode considerar estes economistas de "direita". Podem estar à direita de Rui Tavares, o que não faz de Daniel Bessa, Luís Campos e Cunha e Silva Lopes economistas de direita. Para inquinar o debate, estratégias sublimes que confundem a audiência, empurrando-a para rótulos fáceis que têm o condão de arregimentar apoios entre os mais distraídos. Há o manifesto dos cinquenta e um, sobretudo gente próxima da extrema-esquerda chique. É uma reacção ao manifesto dos vinte e oito. Não se limita a negar as ideias e propostas deste manifesto, contudo: expõe a racionalidade que favorece um programa de investimentos públicos. O contraste é nítido: o primeiro manifesto previne que em tempos de crise tão acentuada a prudência deve vingar, suspendendo os investimentos públicos; para o segundo manifesto, é por causa da crise que urge dinamizar o investimento público. Há, por fim, um terceiro manifesto de gente ligada ao partido do poder. Sem surpresa, limita-se a erguer uma voz tecnicamente autorizada em favor das opções do governo do momento.


Li os três manifestos. E entre o muito que haveria para discutir, interessa-me um pressuposto fundamental que coloca os proponentes do primeiro manifesto em rota de colisão com os signatários dos outros dois manifestos: os interesses das gerações futuras. O primeiro manifesto interroga se é legítimo tomar decisões de investimento que atiram a amortização para as calendas – logo, para as gerações futuras. Este manifesto levanta o problema da equidade inter-geracional. É justo, e legítimo, que hoje tomemos decisões que atiram os encargos para os nossos filhos e netos e, às vezes, bisnetos? Do outro lado da barricada, os aduladores do investimento público mantêm que os interesses das gerações futuras não são um problema. Ou que esses interesses devem ser desvalorizados perante as prioridades do presente. A principal é derrotar a enorme crise. São mais sensíveis à justiça redistributiva dentro da mesma geração, não entre gerações. A política do endividamento atira a solução para os impostos futuros. Ora, entre as gerações futuras haverá gente abastada. Esses são os que vão suportar o ónus: os ricos do futuro. Esta retórica – "os ricos que paguem a crise" – não é desconhecida.


Quanto a saber se as gerações futuras devem pagar o preço pela ultrapassagem da crise de hoje, é possível atirar para cima da mesa inúmeros argumentos contra e a favor. Tudo depende do lado da barricada em que nos enquistemos. Não é isso que hoje interessa reter. Antes, uma incoerência que me despertou a atenção – uma incoerência que atinge quem defende as gerações futuras e quem desvaloriza os seus interesses. Tenho que convocar um pedaço de filosofia para, de braço dado com o pensamento económico, se perceber a incongruência.


Pois não é que as esquerdas, em geral, se distinguem pelo colectivismo? Não são elas que se atiram ferozmente ao individualismo? Algo não bate certo na desvalorização dos interesses das gerações futuras: resolver os problemas de hoje espezinhando os interesses dos que nos vão suceder é um atentado ao comunitarismo que tanto dizem defender. A menos que valorizem quem existe em detrimento dos que virão atrás de nós - e isso não é uma forma refinada de individualismo? É como se o futuro não interessasse, um certo niilismo inter-temporal que não condiz com o catecismo filosófico de que se dizem seguidores.


Em contrapartida, entre os críticos da fobia dos investimentos públicos estão os libertários de direita (com os quais tenho ampla identificação). Apontam o dedo ao egoísmo inter-temporal dos defensores do investimento público sem regras. Eis a sua incoerência: a defesa dos interesses das gerações futuras não quadra com o individualismo metódico que é sua filosofia. Se são tão individualistas, como podem estar preocupados com os interesses da gente que vem a seguir a nós?


Isto das incoerências tem muito que se lhe diga. Amanhã volto a elas.

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