25.6.09

De máquina de calcular em riste e binóculo afinado


À consideração dos meus colegas que estudam o fenómeno da comunicação social.


Caros colegas: não sei se seguem a minha linha – um investigador não muda o estado de coisas que investiga, limita-se ao diagnóstico. Mal de mim se pedisse para afinarem o diapasão pela impiedosa crítica ao padrão dominante da imprensa a que temos direito. Seria a maior das incoerências pessoais: o que pedia seria o contrário do que apregoo como ciência. Todavia, vejo o passeio triunfal, a soberba até, da imprensa e às vezes apetece-me vomitar. Dizem: quem não se dá ao respeito, como pode ser respeitável? Pois é assim que vejo grande parte da comunicação social que se enlameia com aspectos mundanos. Só porque está consagrado que a imprensa deve trazer as notícias que engordam as preferências da audiência. Nesse caso, a imprensa perdeu o rasto ao papel pedagógico. Agora é o público que ensina a imprensa. A seriedade deixou de interessar à imprensa?


Vem isto a propósito do corrupio que a transferência de um jogador de futebol provocou nas páginas dos jornais e em canais de televisão (da rádio nada digo; a estação que ouço é discreta a veicular notícias). Dizem: milionária transferência. Opinam muitos: obsceno o valor que um clube pagou para resgatar o contrato do futebolista. Daí a termos vastos sectores da imprensa a sacar da máquina de calcular para desmultiplicar as inúmeras possibilidades de conversão do valor da transferência, foi um curto passo. Ficámos a saber que Ronaldo vale o seu peso em ouro não-sei-quantas-vezes, que vale não-sei-quantos Boeing, ou que a ainda mais pornográfica (asseveram os moralistas) cláusula de rescisão fixada pelo novo clube do "craque" equivale a zero-vírgula-não-sei-quanto por cento do PIB pátrio, um ultraje à pobreza que consome o mundo. Outros quiseram ser ainda mais explícitos: Ronaldo vai ganhar uma pipa de massa por ano – o que significa que em dois dias ganha tanto como o presidente da república (e talvez assim se entenda a intervenção "preocupada" de sua excelência). Em tudo isto, um mérito, ao menos: houve muita gente a melhorar a proficiência matemática.


A seguir, o "craque" foi de férias. E todos fomos com ele para LA, Califórnia. Quem quis continuar a ler a saga pelas páginas dos jornais, sensacionalistas ou não, foi partilhando as notas de débito que o cartão de crédito muito dourado ia pagando: noites em suites que custam uma fortuna; fortunas gastas em garrafas de champanhe em discotecas da moda; e o mais que foi esquadrinhado. E fomos para a rambóia com uma socialite duvidosa. Só faltou partilharmos o quarto para sermos testemunhas das "proezas" carnais do "craque" – que logo houve por aí alguma imprensa, eu diria mais achacada ao marialvismo, que se apressou a glosar as palavras da tal socialite, pois ela gabou as "façanhas" do "craque". Como se a lusitana homenzarrada toda ficasse automaticamente aferida por estas "proezas" do craque. Ó fraca estirpe! Pobres daqueles que fazem suas as escapadelas dos outros. E, ainda por cima, levitam pessoais frustrações em páginas de jornais.


Depois o "craque" atravessou o Atlântico de regresso à pátria que se embeiçou, enfatuada, por o "craque" ser o "maior do mundo". Outra vez o doentio diagnóstico: como se a pátria deixasse de ser um inditoso lugar só porque um dos seus vingou no estrelato do futebol. Soubemos: que o "craque" voou em avião privado (vai-se lá ele misturar com a maralha…), que pegou no seu Ferrari, que andou a fazer compras nas suas lojas preferidas (para acentuar aquele ar imensamente azeiteiro que vem esmerando), e que foi de abalada para o Algarve com a trupe familiar em peso. Até tivemos direito a saber que as refeições são servidas por uma certa empresa de catering.


Eu digo: a pior profissão do mundo, nestes dias de voyeurismo compulsivo atilado pela imprensa embriagada pelo sensacionalismo, é ser famoso. Ou jornalista destacado para cobrir, ao milímetro, todos os passos dos famosos.


Tenho uma dúvida que não consigo esclarecer: a imprensa é assim tão mole porque a convenceram a dar ênfase ao que o povaréu gosta de ler e ver, ou porque os jornalistas que dominam são da mesma têmpera do povaréu? Conseguem, caros colegas das Ciências da Comunicação, dar resposta a esta dúvida?

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