7.5.09

Importa-se de repetir?


"Se Viana do Castelo, Braga, Cascais e Sintra passaram a não autorizar touradas nos seus concelhos, porque é que permitem abortos? A pergunta é feita pela associação Juntos pela Vida, que já enviou uma carta aos autarcas destas zonas, para que reflictam sobre a questão e tomem uma posição. O movimento pediu também à associação Animal que se junte à causa".


Portanto: estamos a comparar touros com nascituros, um animal com um ser humano? Bem sei que esta é a interrogação conveniente à tal associação que continua a lutar contra o aborto: a pergunta contém o ingrediente que traz (assim julgam) a razão para o seu lado, pois insistem que um aborto voluntário é retirar a vida a um ser humano em formação. Homicídio, parricídio, ou outra fórmula alternativa, é algo que não interessa esclarecer. Não vou mergulhar nessa discussão – saber se um nascituro é um ser humano merecedor de protecção legal contra atentados à vida. É assunto que dá pano para mangas e entretém juristas e pessoas ligadas à bioética.


Por hoje só me interessa perceber o que vai na cabeça de quem congemina uma estratégia de comunicação que põe no mesmo patamar touros e nascituros humanos. Tenho que confessar que me sinto à vontade quando toca à defesa dos direitos dos animais. Já por aqui foram escritas muitas palavras sobre a indignidade das touradas, sobre a aberração que é espezinhar gratuitamente direitos dos animais. Daí a puxar a brasa à sardinha da causa anti-aborto e forjar uma analogia entre a recusa de touradas e a correspondente recusa em admitir abortos roça a lógica da batata. A menos que tudo valha nesta era de trovejantes soundbytes que apenas querem chamar a atenção da audiência, mesmo as mensagens mais improváveis com que algum dia se poderia travar conhecimento.


A menos que isso aconteça, as mentes brilhantes que congeminaram esta estratégia de comunicação devem ter um quociente intelectual a rasar a bitola de um jumento. Até se pode ultrapassar a fase inicial, quando se fica boquiaberto ao notar que alguém teve a imperícia, porventura a oportunista imperícia, de comparar touros com nascituros humanos. Indo além da estupefacção inicial, logo outras perplexidades se somam à contabilidade. Se a associação Juntos pela Vida quer entrar pela palermice dentro, por que não conseguem os seus apaniguados perceber que uma tourada é um acto público de humilhação de um animal forçado a juntar-se ao espectáculo que compraz os aficionados; que não existe voyeurismo algum num aborto; e que decerto ninguém regozija quando subtrai ao ventre materno um embrião (suponho, nem a progenitora que toma a decisão).


Percebo onde a associação contrária ao aborto quer chegar: se se proíbe o menos (touradas; apenas sofrimento num animal), por que não se há-de proibir o mais (abortos; a vida de um nascituro humano ceifada)? Não lhes ocorre que a comparação é depreciativa de quem a faz? E que essa comparação joga-se contra a causa que têm o direito de defender? O bom senso ensina que só entra em comparações o que for comparável. Quando enjeitamos esta regra básica e torcemos as comparações usando variáveis que não são comparáveis, o que daí resulta é um aborto de comparação. Sobram, ainda, os danos à imagem – como é sabido, a bitola máxima dos dias correntes. Eis um conselho gratuito: se os membros da associação querem fazer pela vidinha (que é como quem diz, pela imagem), podiam ao menos não disparar tiros contra o próprio pé.


De uma vez por todas, entendam o filme que se passou diante dos vossos olhos: houve um referendo em que saíram derrotados; o governo do momento fez vista grossa às regras e validou o resultado de um referendo que teve mais gente a abster-se do que a nele participar; uma lei legalizou os resultados do referendo; e as leis têm validade em todo o território (por favor, não vale a pena resgatarem dos arquivos a aberrante excepção que permite touros de morte em Barrancos, não vão os vossos adversários propor que só se façam abortos naquele canto do Alentejo). Agora é hora de capitular. Podem não gostar da lei, como nesta terra haverá dez milhões de almas que torcem o nariz a esta, àquela lei, a muitas leis – e mesmo assim as cumprem. Onde está o fair play democrático, o entendimento do que é um Estado de direito? Ficou debaixo de uma espessa camada de pó nas sacristias que frequentam?


Este conservadorismo balofo é o melhor aliado dos seus adversários.

1 comentário:

Dylan disse...

Grsnde artigo. Parabéns.