8.4.09

A indecência da decência


Expoentes da moral ensinam à turba: todos temos que ser decentes. É quase um código de conduta "republicano" – como se republicano fosse a única forma decente de ser e de estar, resguardando aqui a rejeição da monarquia por ser anacrónica forma de organização do poder. E o que é a decência? O que é ser decente? Aos costumes, os impecáveis defensores da rectidão dizem nada.


No entanto, o conceito – o indeterminado conceito – está na moda. Por cá foi introduzido por moralistas de pacotilha que, diz-se, navegam à "direita" (José Carlos Espada). Mas quem se distingue a empregar a decência é uma certa esquerda moderada, uma esquerda vital sempre senhora das suas certezas, elas ali tão assertivas e sem possibilidade de interrogações. Clamam pela decência e logo se posicionam como pastores máximos da decência. Os que aparecem a ensinar a decência como código de conduta definem, por inerência, as balizas da decência. Eis o que me deixa desconfiado: não é inocente esta perseguição da decência, pois os que enxameiam discursos com decência são os empertigados mestres da decência. Imediatos juízes de comportamentos alheios. Eles e só eles capazes de determinarem o que é decente e o que arrosta o lamentável rótulo de indecência.


Todavia, falham por se esquecerem de delimitar o conceito. Não se dão ao trabalho de esclarecer o que é a decência. Sem a definição do conceito, como podemos saber se uma acção é decente ou indecente (atendendo aos critérios mantidos pelas luminárias que emprenham os ouvidos com as suas arbitrárias noções de decência, que fique salvaguardada a objecção metódica)? Proponho uma ajuda: porventura, a decência é um conceito indeterminado. Talvez não queiram admitir que a decência entra nos terrenos da subjectividade. Quando há relativismo a rondar à esquina, por mais que haja empenhada gente a esforçar-se por desenhar o mundo com a precisão da régua e do esquadro, os milímetros perdem precisão e a esquadria entorta-se. E logo neste mundo, tão heterogéneo nas ideias, tão variado nas lentes com que é focado.


Estes moralistas em potência dão exemplos de decência? Vão dando, à medida das conveniências e logo que se aprestam a mostrar como a sua ideologia é impecavelmente superior, quase como se fosse um imperativo categórico habitar nas suas alfombras. A decência é para onde sopra o vento. Percebe-se o método: quem se pode recusar a ser decente? E se a decência é um exclusivo da internacional socialista e dos seus ideólogos, é só juntar as peças do puzzle: é indecente não saltar para a barca da internacional socialista.


Indecente – se é que, por um momento, se pode captar alguma objectividade no conceito – é afiançar que existe decência e, caso a caso, assinalar com lápis azul o que é decente e o que escorrega para a indecência. Isto faz parte de uma sanha colectivista que irrompe com vigor, a retórica bem oleada dos imperativos sociais, de como o indivíduo se deve inclinar perante os interesses do grupo. A decência é mais um ingrediente para diminuir a autonomia individual. Curiosamente, há aqui uma analogia com o dogmatismo religioso que empenha a liberdade individual. Tal como na alegoria dos pecaminosos actos que diminuem a autonomia individual, remetendo os pecadores ao desconforto da culpa e às dores da consciência, os meirinhos da decência querem levar os indivíduos a idêntica sensação de culpa quando descobrirem que foram "indecentes" (para os padrões de decência fixados pela arbitrariedade dos meirinhos). Através da decência assim estabelecida, e do convencimento de que todos devemos respeito a essa decência, não passamos de marionetas nas mãos de gente que adora controlar as massas.


Apesar de não saberem definir decência, estes cansativos moralistas vão mostrando, episodicamente, o que é e não é decente. É uma bússola a que dou atenção. Sempre que essa bússola aponta para o norte, eu vou a caminho do sul. Quando os vejo a enaltecer a decência, só me apetece ser terrivelmente indecente. Mas quem são eles para se elevarem ao púlpito e decretarem, com uma autoridade moral que inventam para si mesmos, o que é decente e o que é indecente?

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