26.3.09

Mas o que é que isso interessa?


Ah, a gente que se faz de si tão importante. A gente que julga que o que lhe interessa é o que interessa aos demais. Ah, em bicos de pés a ensaboar a ciência que cultivam, quando tratam de elevar ao patamar de ciência as fábulas que lhes dão notoriedade. De outro modo, só conseguiriam erguer a cabeça à superfície, o resto do corpo aprisionado ao lodo que o arrasta ao solo.


Se tudo é pertença da subjectividade, e se temos gostos que nos diferenciam tanto, é certeiro não negar a importância do que os outros fazem e em nós manifesta indiferença, porventura desdém em dias de má disposição. Temos que aceitar que os acossados pela sua irrelevância se doam na causa que julgam amesquinhada. O que não elimina o direito ao pessoal julgamento. Era o que mais faltava que fosse cerceado o pessoal julgamento apenas porque dele resultam susceptibilidades beliscadas.


O problema maior é fazermos irrelevância. Ou, se julgamos que o não é porque o empenho pessoal tolda o discernimento, asseguramo-nos que há enorme utilidade no que fazemos. Nem que seja utilidade individual. Que, todavia, não é o critério que cauciona a aceitação do que fazemos. Repetidamente interrogamos os outros e a sua ciência, disparando a pergunta assassina: mas o que é que isso interessa? A pergunta assassina. Pois ela contém em si a resposta. E, no entanto, escasseia a capacidade para reverter a interrogação e fazê-la circular pelas entranhas, sondando se o que fazemos tem algum interesse.


Se calhar andamos todos mergulhados na irrelevância do que fazemos. E do que somos. Se calhar andamos todos enganados neste mundo. E, se calhar ainda, estamos no envenenado caminho que se engana a si mesmo. Só que nesses casos rareia o discernimento para termos a noção de que nos andamos a enganar. De resto, quando a miopia consome a exegese de si, extingue-se a capacidade para o desprendimento de si mesmo. Se nem disso se é capaz, que autoridade para interrogar aos outros "mas o que é que isso interessa?"


Há uma morfina que consumimos: a que adormece a dor da pessoal irrelevância. É quando arremetemos pelo túnel de onde não se antecipa a luz final. Quanto mais avançamos pelo túnel, mais fugimos da pessoal irrelevância. Mais deixamos em silêncio a resposta à interrogação "mas o que é que isso interessa?" Os passos pelo chão irregular sentenciam a apreciação dos outros e a reiterada pergunta "mas o que é isso interessa?" Mas só para os outros. Tudo se passa como se a irrelevância de uns tivesse o condão de aplacar a pessoal irrelevância. Os que enchem a boca, dias consecutivos, com a interrogação refugiam-se da pessoal e condoída insignificância.


O argumento do número é critério para responder à lancinante interrogação? Se alguém reúne séquito é sinal que muita gente nele se revê, logo, caução imediata. Ao contrário, a multidão que se encerra nos cadinhos das suas gestas sem conseguir atrair uma alma para amostra, está condenada ao sacrário das suas dores transformadas em cintilante narcisismo. Estes são tempos de paroxismos. As coisas têm o significado do seu oposto. Uma gigantesca encenação, só actores que saltam detrás da cortina em papéis que são os que imaginam para si mesmos. Uma fantasia emproada à condição de realidade. A certa altura, já nem as fronteiras entre a fantasia e a realidade são nítidas. Já as palavras "fantasia" e "realidade" perderam a espessura do significado.


Mas eis que outra, definitiva, interrogação sobe no firmamento: e a pessoal irrelevância, mas o que é que isso interessa? Lá diria, com acerto, o Adolfo: "nada". Mas o que é que interessa saber se tudo ou alguma coisa interessa? Nada.

Sem comentários: