19.3.09

“A esquerda” em contramão


Se há coisa que adoro são estereótipos. Sobretudo quando os seus feitores proferem palavras tão solenes que encerram a negação dos estereótipos. Na paisagem política indígena – e não só – aprecio bastante a diligência de algumas esquerdas em gizarem, com traço fino e invejável esquadria, a espessura das verdades absolutas e dos imperativos categóricos. Ontem calhou a Rui Tavares, no Público, esta pérola:


"Não por acaso, a obsessão com a homogeneidade é de direita (se pensarmos bem, é herdeira da obsessão religiosa com a pureza) e a obsessão com a igualdade é de esquerda. A direita preocupa-se menos com a desigualdade desde que o país seja homogéneo. O conservadorismo nacional é anti-regionalização, anti-imigração e antidireitos dos gays (bom dia, dr.ª Manuela Ferreira Leite), mas não perde o sono com a desigualdade".


A começar, como se pode reduzir tudo a uma "direita" e a uma "esquerda"? Contrariamente ao enunciado do número dois da lista de deputados do Bloco de Esquerda às eleições para o Parlamento Europeu, esquerda e direita são conceitos plurais. Há direitas e há esquerdas, no plural. Sou capaz de não confundir Rui Tavares com a mesma esquerda dos que se passeiam pelo PS e dos devotos militantes comunistas. Em contraponto com Rui Tavares, nem sequer consigo colocar o PSD na direita – mas esse defeito é meu, um defeito de perspectiva. Assim como assim, do sítio onde me encontro vejo a esquerda com que Rui Tavares simpatiza como território da extrema-esquerda – mas não é essa a discussão que me traz aqui.


Coloco a citação de Rui Tavares no prato e preparo-me para a dissecar. Para o historiador, as categorias aparecem todas arrumadinhas da forma como ele as vê passar diante da tela que os seus olhos fitam: "a direita" é altar da homogeneidade; a heterogeneidade é açambarcada pela "esquerda". Eu, que sou de direita – uma direita que não se revê em nenhuma das direitas com lugar marcado na plateia da política caseira –, abomino a homogeneidade e os seus traços identificados por Rui Tavares. Repugna-me a direita presa ao estertor das bafientas sacristias. Devia existir regionalização ou qualquer solução que descentralizasse poder e recursos financeiros (com o senão dos autarcas serem filhos pródigos quando se banqueteiam à mesa do orçamento). Sou favorável à total abertura de portas aos imigrantes, e não é por oportunismo tacanho ao perceber que os imigrantes são necessários diante da crise demográfica que aí vem. E por aqui já deixei, mais do que uma vez, palavras a defender o casamento de homossexuais e o seu direito à adopção. Para terminar, é inaceitável acantonar a direita no "conservadorismo". Há direitas que rejeitam o conservadorismo.


Pelo binóculo estreito de Rui Tavares, tudo isto faria de mim notável esquerdista. Desengane-se. A cada dia que passa, tudo o que ressoe a "esquerda" é destino evitável. E ser de esquerda é só isto? É só secularização, regionalização, hospitalidade com os imigrantes, paridade entre heterossexuais e homossexuais, arejamento intelectual deixando "à direita" só ideias tacanhas? Se me situar à direita, ser-me-á vedado aceitar os malefícios do enfeudamento religioso do Estado, pugnar por um modelo de regionalização, defender as virtudes de uma sociedade aberta aos outros, zelar pela concessão de direitos cívicos aos homossexuais tal como são garantidos aos heterossexuais, deplorar os atavismos? Porventura Rui Tavares teria a tentação de dizer que estou enganado; que me acho de "direita" quando as ideias são de "esquerda". O que vale é que o sítio onde nos colocamos não é definido pelo juízo que os outros fazem de nós. Para contrariedade destes iluminados que teimam em arrumar tudo em categorias tão estanques, não pertenço a qualquer das esquerdas.


As frases escritas pelo punho de Rui Tavares são a negação do seu postulado. Pois se o número dois da lista do Bloco de Esquerda às eleições para o Parlamento Europeu sentencia que a pluralidade é atributo da "esquerda" e da "direita" só podemos esperar homogeneização, como explicar que ele, na ânsia do estigmatizar através dos estereótipos, acabe por incorrer no pecado que atira para cima da "direita"? No fim de contas, é Rui Tavares que faz a homogeneização (da "direita" e da "esquerda"). Um frei Tomás que também pratica o contrário do que prega.


Se não estivesse encerrado em quadros mentais herméticos, talvez Rui Tavares entendesse que há "direitas" e "esquerdas", ambas plurais. Em ambos os lados da barricada há quem cultive a homogeneidade e quem se aliste na heterogeneidade. Ao contrário do que supõe, o mundo não é assim tão binário, tão a preto e branco.

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