26.1.09

As façanhas masoquistas que distinguem o admirável rapazote novo


Parece que está na moda, entre a geração que pertence à adolescência actual: põem um amigo a filmar pessoais façanhas que terminam com quedas estrepitosas, o jovem kamikaze a contorcer-se com dores e a pandilha em redor a aplaudir através de sonoras gargalhadas. São estes os novos heróis, o esboço de um novo homem que deixa perplexos os engenheiros sociais que se esforçam por legar os vestígios do que deve ser o admirável homem novo.


Quem assiste à performance dos estouvados que se estatelam contra uma parede depois de uma tresloucada correria ficará boquiaberto diante da demência que os próprios fazem questão de revelar no You Tube. Ou ajuízam, sem hesitações: são patetas, ali à frente de toda a gente a exibir as mãos em ferida depois de um trambolhão, um riso triunfante em vez de um esgar de dor. Uns indignam-se e outros não conseguem reprimir uma palavra insultuosa ao verem a reportagem sobre a moda masoquista. Mas os jovens doidivanas devem ser deixados na sua dolorosa paz. Não se divertem nos esboços de ensandecimento que os trazem para filmagens de que depois fazem alarde público? Fazem o papel de patetas? Onde está o mal quando alguém se presta a um circense papel?


Há "alarme social". As consciências serenas, que pastoreiam lá para os lados do conservadorismo dos hábitos, reprovam a moda. Preocupam-se com o estado físico dos jovens atraídos pela vertigem das exibições que terminam em dor e marcas no corpo. Duvidam da sanidade mental deles. Suponho que se deva proibir tal coisa, mais uma proibição no longo e audacioso trajecto que nos há-de conduzir até ao estatuto de homem novo e sem defeitos. Eu não partilho da inquietação dos penhores das boas almas, nem reprovo os jovens pelos actos circenses. Afinal, sempre gostámos de circo, não é?


Heróis os que no circo arriscam a pele, os que fazem acrobacias em cima de uma motorizada no poço da morte. Habituaram-se a ser admirados pelos fracassados corajosos que se entusiasmam com a adrenalina dos outros. E, quantas vezes, não há entre os espectadores um desejo inconfessável, um desejo mórbido, de vê-los acidentados, ou pelo menos de vê-los a milímetros de um acidente pavoroso? É quando contrapõem os que reprovam a mania dos contemporâneos adolescentes de se entregarem a patéticos exercícios que culminam em dor: os que desafiam a gravidade no poço da morte são profissionais. Limitam-se a assustar os espectadores que julgam que se vão despenhar derrotados pela gravidade. A antítese com os doidivanas que se estatelam com fragor, o sangue a escorrer das feridas abertas, imersos no amadorismo, reféns de imberbe voluntarismo. Ainda por cima, riem-se da sua pessoal dor. Talvez porque à sua volta a pandilha que os acompanha ri-se ainda mais alto.


A reportagem sobre o modismo, a reportagem que testemunhava o "alarme social" que ao menos dá ocupação a alguns psicólogos, divertiu-me. É o circo, renovado. Com a vantagem de ser gratuito. E espontâneo, que os circos tradicionais são muito parecidos com os mágicos que não são mágicos mas apenas ilusionistas – mestres na arte de iludir a audiência. Quem gosta de ser enganado ao ver um espectáculo? É esta a vantagem do exibicionismo masoquista dos jovens em longo desfile no You Tube. É tudo genuíno. Não há truques debaixo da manga. Até a dor, depois de um adolescente martelar os seus próprios dedos, até a dor é genuína. Haverá algum voyeurismo ao ser espectador destas façanhas que roçam a insanidade, concedo. Prefiro a faceta lúdica do exercício: se os jovenzinhos se divertem a dar espectáculo para a trupe, se parecem gostar da sensação da dor física depois de embarcarem num carrinho de supermercado que se despenha ladeira abaixo, ai de nós, a "sociedade" vigilante, se reprovar as façanhas. Neste mundo tão cinzento, quem pode ter a ousadia de liquidar a criatividade?


Aos que mostram tanto desassossego pela moda masoquista da gente de tenra idade, uma lembrança necessária: mergulhem na vossa adolescência e recordem alguns tresloucados actos que nem a difusa memória esconde. Tresloucados de outra maneira, mas tresloucados à mesma. Talvez esse desassossego seja inveja da juventude esfumada nas páginas do calendário que já ficaram gastas.


Sem comentários: