22.1.09

Antes que seja noite


Não são reparações, óbvios simulacros das obras em projecto a que a ausente coragem, ou apenas a preguiça, prende um garrote invencível. São actos, visíveis. Traços que saiam do papel e encontrem um leito em factos. A consumição maior de uma vida: um coro de lamentos pelo tanto que aprouvera fazer sem, contudo, se soltar o freio da incapacidade. O mal é nem se chegar a descobrir se é incapacidade ou ausente aptidão.


Anoitece e o crepúsculo agasalha o frio que se intromete nas veias. É a fonte de todos os entorpecimentos, o ar gélido que tolhe os movimentos, os subtis movimentos da vontade. É como se tudo se congelasse numa alvura envenenada, a inércia a elevar-se no zénite do altar da existência. Por um momento o corpo fica extasiado, pregado ao chão diante do convés da letargia. Enquanto o espírito alteia as asas e sobrevoa o corpo que se fina perante o crepúsculo implacável. Acomete uma raiva indomável: só então é dada a perceber a porosidade do tempo tragado de um gole só.


Às vezes, ao luar, nos distantes pensamentos em espiral por caminhos aleatórios, sobrava alguma lucidez. Era quando apetecia agarrar o sol ao poente, não o deixar esconder-se no horizonte. Congelar a noite, a escura noite em sagração dos mistérios que não pediam água para sorver. Era quando o corpo se embriagava sem recitar o álcool. Embriagava com o aluvião de pensamentos, uns atropelando-se aos outros, em perfeita desordem. Contudo, uma desordem que tinha o travo da harmonia. As perguntas que esbarravam na escuridão de respostas desdobravam-se em mais interrogações, as incessantes interrogações. Nem que fosse para obliterar todos os becos sem saída onde os pés tinham desaguado outrora. Havia muitos labirintos de escolhas imprudentes, um ror de encruzilhadas que tinham conduzido a lugar algum.


E se a lua acendia uma faísca que deixava uma nesga de céu escuro a refulgir, aproveitava para ler o que a opacidade nocturna desalinhava. Entrava fundo dentro da noite, naquelas noites em que a insónia derrotava o sono – mesmo nos dias em que o corpo se arrastava preso ao seu cansaço. Teimava em ler os ténues sinais que irradiavam da penumbra lunar. Talvez aí residisse o segredo, talvez aí se amanhassem as águas límpidas a brotar do manancial serrano, as cobiçadas águas resplandecentes na sua gélida temperatura. A fonte contendo o nutriente para um devir diferente.


Era o almanaque. Com mapas e tudo, uma bússola infalível, respostas magicamente dispostas que as tantas interrogações sucumbiam no seu cansaço. Nem os aterradores labirintos resistiam àquela distinção. Tudo embelezado com a nitidez dos dias ventosos que limpam do horizonte todos os vestígios de neblina. Era nesses dias que a noite demorava, exactamente como se o pôr-do-sol fosse adiado. Até que as resoluções estivessem cumpridas. Até que já não houvesse sequer significado para a palavra arrependimento.


Só que esse lugar não pertencia a este lugar. Era um idílico lugar onde a perfeição das coisas se consome na sua impossibilidade. Falsamente idílico, um odor que só tinha a aparência de perfume, só a anestesiar os sentidos. Era uma dimensão onde a inércia do corpo se transformava em arremedo de absolutas, fantásticas realizações. Que a experiência dos sentidos desmentia com o fragor dos desapiedados mentores da franqueza. Percebia que pertencia a um lugar que não existia. O pior era entender que o exílio de que andava em demanda era um lugar exemplar, onde o corpo, quando despertava dos sonhos acordados, esbarrava com um estampido doloroso.


O mal era a noite aterrar sempre que era indesejada. Logo quando quase tudo o que era ambicionado estava à mão de semear. Só que vinha a noite, como a maré que esbraceja ao beijar a areia e arruína, sem compaixão, o castelo que tinha levado tanto tempo a erguer. Sobravam os muitos planos, armazenados na biblioteca das memórias. Uma quimera apenas, pois as paredes da biblioteca ocultavam todas as nódoas coleccionadas através dos tempos. Mas da boca persistia o dizer, repetido à exaustão, como se fosse o dogma em que se encerrava: há-de a noite chegar. Mas antes faria cumprir a centelha que se desprende dos dias claros.


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