5.12.08

To live fast and die young


Um mito. Urbano, moderno, de mão dada com um certo romantismo. As vidas vividas tão depressa que consomem a própria voracidade do tempo. Ultrapassam o tempo por dentro. Os endemoninhados da veloz vida, depressa exauridos. Depressa se consome a sua então efémera vida. O epitáfio regista a biografia em tonalidades douradas: viveram pouco, decerto, mas muito. Há páginas e páginas de literatura a consagrar o estilo. E um exército de adoradores dos penhores da vida delirante, célere e breve. Poucos, contudo, os que passam do enamoramento das intenções e culminam o pessoal percurso com uma desvairada e breve correria pela existência.


Dizem que é na juventude que o festim da vida se extrai na sua plenitude. É na juventude que residem, intermináveis ao que parece, as energias para os desvarios. Dorme-se pouco. O rosário de excessos, infindável. Mas as cicatrizes dos excessos ficam acumuladas, inexoráveis. Ao início imperceptíveis, enquanto as forças não se exaurem. Todavia, a eternidade é a trémula ilusão que se desfaz em nada com a densa névoa de cicatrizes que testemunham os desmedidos excessos orgulhosamente ostentados.


Desvanecem-se, as forças. É quando o declínio chega de rompante. A rampa da vida na sua tremenda e imparável inclinação. Não há como travar a marcha para a decadência fatal. Morrem, ainda jovens, em corpos ulcerados por todas as cicatrizes que são o lastro orgulhoso dos devaneios incessantes. Morrem envoltos em corpos mirrados, mas imersos numa singular felicidade – a felicidade de quem soube chegar ao tutano da vida sem esperar pelo atroz envelhecimento.


Nessa altura, têm tempo para a contemplação em redor. Por pretexto, ou talvez não, amedronta-os a velhice. Dizem: que o envelhecimento é uma faca que se espeta na decência da vida. No seu leito de morte, não vertem lágrimas de arrependimento pela breve passagem pela vida. Selam pelo seu punho o testamento de uma vida plena, os minutos todos aproveitados, todo o sal, todos os sabores resguardados nas memórias indestrutíveis. No lacre do testamento, a teimosia derradeira: envelhecer seria um inútil desgaste de tempo, uma ofensa à impetuosa existência de outrora. Num paradoxal arrebatamento de lucidez, agradecem que a doença fatal neles tenha repousado tão precocemente. Sentem-se apaziguados com as respostas às perguntas listadas ao longo da vida. Saciados com a excitante forma de vida dos dias em que se insinuavam no tempo e eram eles que o consumiam.


Os adoradores da vida intensa e breve são um insulto à velhice. Um mastro onde hasteia uma bandeira hostil à biologia que embala a chegada da velhice aos corpos já cansados. Se a ordem natural fosse a dos cultores da vida em contra-relógio, a esperança de vida por aí abaixo parando numa cifra sem precedentes. A geriatria perdia o seu lugar no dicionário. E tantos os problemas financeiros que desapareciam com um toque de magia, o beneplácito de uma humanidade convertida ao arroubo de uma vida passada em fast forward.


Não me comovo, não me comovi, com o culto da vida veloz e delirante. Prefiro-a devagar, reter os instantes memoráveis, cultivar uma inacabada curiosidade pelo infinito que fica sempre por conhecer. As angústias do corpo que envelhece não são pretexto para a desilusão pela juventude cujos vestígios já só pertencem às recordações. Porventura será a angústia do ateu a estalar, com fragor, no peito estrangulado pela convicção de que a morte é o fim da existência. O imperativo de prolongar a existência até se tornar tão ténue que encontra o indeclinável fim. Querer que o dia final esteja longínquo, adiado sempre uma e outra vez, o mais que for possível.


Ao contrário dos enamorados pela vida que escorre fulgurante e depressa, não me amedronta o envelhecimento. Não acredito na fábula de uma existência ungida pela bênção da intensidade. Só a espessura do tempo cauciona a degustação do muito que a deambulação pela existência anima.


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