25.12.08

Feios, porcos e maus


(Um conto de natal alternativo – ou um conto alternativo de natal)


Organizavam-se em bando, sempre clandestinos. Vinham do nada, anónimos no meio da massa anónima que festejava o natal. Odiavam o natal. Eram brigadas de um terrorismo singular, um terrorismo insolitamente sem violência. Pelo menos, sem a violência física do terrorismo habitual. Faziam-se notar por outra violência, uma violência que atacava a sensibilidade das pessoas. Por roubarem o natal às pessoas.


Preparavam com antecipação o boicote das festividades natalícias. Reuniam-se em segredo, tão bem resguardados que não havia polícias, sequer diligentes serviços secretos, que conseguissem desarticular os preparativos para a adulteração do natal. Eram gente comum. Gente respeitável, alguns até bem colocados na estratificação social. E embora se dessem a conhecer pelo provocante nome "feios, porcos e maus", quase nenhum reproduzia o estereótipo. Só eram feios, porcos e maus porque roubavam o natal às pessoas que o continuavam a sagrar de forma tão intensa. Nada os movia contra quem se deixava enfeitiçar pelo natal; apenas não gostavam do natal. Era contra o natal, o natal como instituição enraizada, que se agitavam. Usavam a mesma retórica belicista da imbecilidade da guerra feita pelos supostos detentores do monopólio da violência legalizada (os Estados): os decepcionados pelo furto do natal eram as suas vítimas colaterais. A esses, sobrava a alternativa de serem, também, feios, porcos e maus.


A cada ano que passava, as brigadas captavam mais simpatizantes. Quando chegavam às catacumbas onde se reuniam, traziam motivações muito diferentes. Uns, apenas cansados da rotina do natal. Outros, empenhados na militância de ideologias que se não revêem no consumismo natalício. Outros ainda, de surpresa, vindos de quadrantes católicos mais radicais, decepcionados pela adulteração do natal: a quadra perdera os pontos de ancoragem com a significação religiosa. E ainda havia alguns a quem a felicidade que irradiava das pessoas em quadra natalícia era um embuste de todo o tamanho – a causa suficiente para se insurgirem contra o natal como reacção à falácia. Também lá se encontravam líricos que condescendiam com o natal; só queriam mudar-lhe o calendário, por estarem cansados dos caídos de Dezembro serem reservados às rotineiras festividades.


Competia-lhes roubar o natal, em todas as suas formas e expressões. O desafio maior era roubar ao calendário o vigésimo quarto e o vigésimo quinto dias de Dezembro. Queriam impor o salto do vigésimo terceiro para o vigésimo sexto dia. Para não haver espaço no calendário para as celebrações da época. Sem os dias correspondentes, as pessoas sentir-se-iam órfãs de calendário, não teriam dias para encaixar o natal. Nos rotineiros hábitos que as moldam, deparavam com a desorientação do tempo saltitante. Quando dessem conta, acordavam no vigésimo sexto dia de Dezembro, já a destempo do natal.


O embargo do natal acontecia por outros meios. Pela calada da noite, alguns feios, porcos e maus furtavam as lojas que vendiam bacalhau. Sabiam que para uma multidão não há natal sem a verificação das tradições gastronómicas. Era outra maneira de semear a desorientação nas pessoas: como celebrar o natal à míngua de bacalhau? Outros elementos destruíam as iluminações de rua alusivas ao natal. De nada servia às autoridades patrulharem ruas e avenidas. Ensaiavam actos de diversão, para atrair as polícias a outros locais. Ficavam com terreno aberto para boicotarem o que quisessem. Havia os actos mais pequenos: todos os pais natal trepando pelas paredes das casas ou empoleirados nas varandas eram retirados. Impediam as encomendas de figos secos vindos da Turquia. As confeitarias já se recusavam a fabricar bolo-rei, pois sabiam que se o ousassem fazer não conseguiam vender sequer um bolo-rei. E até as televisões, constrangidas à mudança de hábitos: os "natais dos hospitais", enfim, banidos da antena, pois as brigadas tinham como sabotar a emissão.


Nem sequer as lágrimas das crianças – das crianças ainda com idade para se recordarem do que era o natal na tradição fabricada – comoviam os feios, porcos e maus. Talvez esta insensibilidade justificasse que fossem "maus" acima de tudo, e por arrastamento "feios" e "porcos". Não se demoviam nem com o ar contristado das crianças. Queriam que as crianças mais novas, aquelas que começavam a crescer sem saber o que era o natal de antanho, não lacrimejassem na ausência do natal roubado.


1 comentário:

Anónimo disse...

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