2.10.08

No reino dos ogres


De cada vez que Hugo Chávez aparece é a boçalidade em pessoa que desfila diante dos olhos. Posso estar comprometido com a impressão que a personagem me causa. Também é verdade que tanta incontinência verbal traz vantagens: ter um elemento circense na política internacional, é um favor que me fazem. Nem que mais não seja para desanuviar a atmosfera sempre solene, tão carregada, tão cinzenta, de figurões impassíveis a mostrar toda a sua decência e respeitabilidade. O caudilho da Venezuela é todo o contrário daquele retrato. No meio do disparate militante, actua como um elemento terapêutico: por um lado, só para reafirmar convicções (nos antípodas das suas); por outro lado, as suas apatetadas figuras desembotam a boa disposição.


As encenações televisivas da figura nada ficam a dever às feéricas telenovelas produzidas no país onde é ditador. Aquelas camisas vermelhas, de tão garridas que até ofuscam a vista, já sinal distintivo de um certo folclore que encanta o fiel séquito e enternece críticos pela fanfarrona figura que destila ditirâmbicas oratórias. Vejo-o e ouço-o e adivinho boçalidade em pessoa. A ter modos grotescos em banquetes onde amesenda com os amigos que foi granjeando na política internacional – tudo gente que se recomenda, a começar no camarada Fidel de Cuba, passando pelo presidente do Irão, pelo tirano da Bielorrússia, pelo apedeuta Lula da Silva, terminando no predestinado timoneiro da terra lusa. Se há traço comum a todas estas personagens? Lunáticos, todos (porém em dose variável).


Cada instante reservado à prosápia da personagem traz-me um delírio imaginativo. Toda aquela incontinência verbal e mental só pode resultar numa pose que provoque discreto incómodo nos anfitriões que o recebem, contido incómodo, contudo. Aposto que não se ensaia para libertar sonoros arrotos ao cabo de opípara refeição onde se banqueteou como um príncipe, devorando as iguarias, disparando gordurosos perdigotos enquanto come e fala ao mesmo tempo. Às urtigas as madames que ostentam tratos de polé, discretamente chocadas com a boçalidade do que se considera herdeiro de Bolívar. Obrigadas à genuflexão, as senhoras do corpo diplomático deixam o banquete só depois da exigível vassalagem que o tiranete acha merecedora.


Ou imagino-o, em digressão por lugares emblemáticos de braço dado com o congénere anfitrião, este no papel de cicerone, e a audível flatulência a invadir as redondezas. Sem um esgar de vergonha, gabando-se do feito, deixando que os outros corem de vergonha na sua vez. Há-de até soltar laracha para compor o momento, que só nele não é embaraçoso. Deve ser da minha parcialidade, pois não deixo de imaginar Chávez o campeão dos peidos. Lá onde o horizonte ganha luminosidade, consigo discernir uma explicação. A verborreia acintosa do proto-ditador venezuelano tem o odor da flatulência generosa com que presenteia os que o convidam para visitas oficiais. A verborreia que mais parece encontrar inspiração na actividade intestinal que perfuma os lugares por onde passa.


Há declinações imaginárias que pertencem a certas personalidades públicas, parecem seu património genético. O presidente da câmara de Gondomar em sonoros arrotos em almoços oficiais. Um sisudo ex-presidente da república que é o anti-clímax das emoções. O actual presidente da república, que vem ganhando uma espessura de austeridade injectada pela tão elevada solenidade do cargo, e tão beato que é em pessoa o anti-clímax sexual. Como havia Bokassa antropófago. E há em Angola um ditador também esfíngico, de uma frieza cruel, senhor para ordenar torturas com a mesma naturalidade de quem se senta à mesa para um lauto pequeno-almoço enquanto lê sumários técnicos dos consultores que tratam das suas aplicações financeiras. Ou ainda o pipi que governa a França, que muitas horas perderá diante do espelho a contemplar a sua esbelta figura.


Concedo: as imagens que construímos podem ter um tremendo alçapão debaixo dos pés, as pessoas assim retratadas afinal todo o seu contrário. Só que nestes tempos em que quase só se cultiva a imagem, as figuras que se entregam nos braços de uma imagem edificada com precisão cirúrgica não conseguem escapar dos rótulos (fantasiosos ou não) que a turba lhes aplica. Os olhos cerram-se e chegam ao santuário da imaginação, pintando na tela as personagens em todos os detalhes imaginados.


Por que não hão-de as esquerdas ter direito ao seu ogre privativo? Até proponho: um duelo entre a personagem tão vituperada pelas esquerdas, tão achincalhada pela sua enorme boçalidade (Alberto João Jardim), e o ogre da Venezuela.


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