1.9.08

Um retrato da saúde oral dos lusitanos? É na “Liga dos Últimos”


Se há peças que fazem parte da idiossincrasia lusitana, o programa da RTP "Liga dos Últimos" é património genético. Todos os motivos concorrem nesse sentido. Seja qual for o diagnóstico, o futebol domina a paisagem indígena. Apesar da desertificação que vai tomando conta do Portugal profundo, o programa é um espelho da ruralidade que se vai transformando em curiosidade antropológica. Poder-se-ia contrapor que não há ali retrato algum da portugalidade contemporânea: o futebol não é espelho da cultura autóctone; e a maioria da população acantona-se nos grandes centros urbanos e arrabaldes, o que faz do mergulho pelas aldeolas perdidas no interior uma fotografia da portugalidade na sua excepção.


Para o caso, não interessa. O que me interessa é não perder um só episódio da "Liga dos Últimos". Aprende-se muito. Para os amantes da suposta sabedoria popular, a cada semana o programa é um valioso manancial. Um desfile de personagens inenarráveis que parece perder qualquer vestígio de timidez diante da câmara que os filma. É curioso o efeito que a câmara ligada produz sobre os entrevistados: soltam-se, uma verve imparável, o raciocínio febril, os argumentos que se articulam, desconexos porém. Aquelas pessoas sentem um ímpeto irreprimível em brilhar nos escassos minutos de fama que a inesperada exposição mediática garante. Soltam-se. Por vezes, escorregam para o disparate total. Uns querem falar caro e acabam por ser terroristas da gramática. Outros disparam um conjunto de palavras que, na sua forma total, oferecem um raciocínio desarticulado. É a portugalidade profunda. E os vivas à democracia.


Quando sugiro no título deste texto que a "Liga dos Últimos" é um retrato da saúde oral dos lusitanos, há dois sentidos possíveis no diagnóstico. O primeiro acabou de ser revelado. Quando os castiços abrem a boca para falar, os atropelos à língua sucedem-se sem cessar. É a expressão oral pelas ruas da amargura. A imagem do insucesso da política de educação década após década. A prova de que a escola tem sido encarada com suspeição ao longo dos tempos, porventura um empecilho para os miúdos que deviam estar a trabalhar na lavoura desde tenra idade e não a perder tempo precioso a aprender na escola coisas que não interessam tanto assim. Para as gentes comunicarem entre si, quem precisa de ir à escola?


O programa também encerra um retrato da saúde oral, pois quem desfila nas entrevistas é muito desdentada gente. Velhos, de meia-idade e mais novos, a amostra é sintomática de como as gentes se descuidam a tratar da dentição. O que mais se vê são bocas onde os dentes são a excepção e o vazio se locupletou no lugar onde outrora houve dentes. Homens e mulheres – que também as há entrevistadas no programa, para gáudio (ou talvez não…) das feministas de serviço, apaziguadas com um tratamento jornalístico que obedece aos padrões da igualdade de género – mais novos ou mais velhos, muitas bocas e muito desdentadas. Há bocas que trazem um singular dente escondido nas lateralidades. Há gente que ostenta orgulhosa dentição com um rombo à frente. Corajosa gente, que não esconde bocas desdentadas das câmaras que vão no encalço da sua opinião, mesmo quando as desdentadas bocas trazem dificuldades de expressão.


Os burocratas do ministério da saúde deviam prestar atenção à "Liga dos Últimos". Abrir os olhos à profunda portugalidade que desvenda um panorama lamentável da saúde oral das gentes. Nem precisavam de sair da torre de Babel lá no ministério, dar-se ao incómodo de ir para o terreno e espreitar a boca dos habitantes da Lusitânia profunda. Só têm que ver, todas as semanas, a "Liga dos Últimos". Um programa que presta um serviço incalculável aos curadores da saúde oral das gentes.


Ao ver a "Liga dos Últimos", sento-me na poltrona pronto para um programa de humor. De braço dado com uma lição de sociologia. Se calhar há alguma hipocrisia minha: afinal, a abundante gargalhada solta-se com o grotesco que vem lá da portugalidade profunda. No cortejo de aberrações que se expõem à chacota dos espectadores. Não importa. Ninguém os obriga ao papel circense a que se prestam. Assim com o assim, palhaços da companhia há-os em todos os lugares. É o outro serviço que estes anónimos que saltam para as luzes da ribalta prestam a quem se encanta com a "Liga dos Últimos": um valioso contributo para a boa disposição. Longa vida à "Liga dos Últimos"!


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