12.9.08

Os ateus não deviam gozar feriados religiosos – disse


Por mais que se afiance o Estado laico, os vestígios da religião católica permanecem vivos. Nos feriados, por exemplo. O calendário oficial permeável à tradição católica. Impondo-se a todos, católicos, gente de outros credos, aos ímpios que negam a existência de um deus. Nos feriados religiosos, uma externalidade em favor dos não crentes. Beneficiam, por arrastamento, de algo em que não acreditam. Quem conhece um ateu que proteste contra um feriado qualquer, mesmo dos que têm o selo do catolicismo?


Por isso ouvi dizer: "os feriados religiosos não deviam aproveitar aos ateus". Sabia, ao sentenciar a frase, que era mais uma provocação ao interlocutor ateu que coisa que fosse praticável. Sujeitou-se a ouvir o ateu a retorquir com uma interrogação: "e como se fazia o cadastro de crentes e ateus?" Que o cadastro seria peça fundamental para saber quem ficava a gozar do feriado religioso e quem continuava a trabalhar. Até podia ateus haver que ocultassem a sua condição, só para não serem impedidos do descanso dos feriados religiosos. Afinal, os ateus são gente tão pouco recomendável, com uma moral tão duvidosa, porventura sem espinha dorsal, que não se estranharia que fizessem de conta que não eram aquilo que dantes se anunciavam só para tirarem partido dos feriados religiosos.


Insistia: no fim de contas, os feriados religiosos consagram acontecimentos que só têm significado para quem pratica o catolicismo. Entre crentes devotos e a híbrida categoria dos "católicos não praticantes", só a eles deviam aproveitar os feriados com a chancela da igreja católica. Aliás, há ateus que têm o atrevimento de não saberem o que é consagrado em feriados religiosos. Eu não sei para que serve o 15 de Agosto. Estava convencido que o primeiro de Novembro era o dia das pessoas fazerem o cortejo anual pelos cemitérios, reservado o dia para homenagear entes queridos já sepultados. Afinal, o primeiro dia de Novembro celebra todos os santos, sem discriminação dos ditos.


A indignação dos ateus terem direito a descansar nos feriados religiosos não cessava. O pior, dizia, é que os ateus cometem a aleivosia de satirizar a igreja. Não tementes a deus, escorregam para heresias a torto e a direito. Permitem-se parodiar coisas tão sérias como os dogmas católicos. Para depois, num arroubo de incoerência, se deixarem dormir até tarde quando o calendário regista dia festivo para a igreja católica. Prova definitiva de uma falta de coerência dos ateus, manchando o seu trajecto de vida. De braço dado com o argumento final que a católica esfregava, altiva, na cara do ateu: a generosidade maior dos católicos, que agraciam os ateus com dias de descanso que se ficam a dever a algo em que eles não acreditam.


Mas: não dizia no início da conversa que os ateus não deviam ter direito aos feriados religiosos? Quem, no fim de contas, era apanhado no alçapão da incoerência? O ateu que goza o feriado católico e goza com a religião católica, ou a crente convencida da generosidade dos católicos no legado dos feriados que também aproveitam aos ateus, mas depois reclama que a herética gente devia trabalhar nos feriados religiosos? Que culpa tem o ateu das meias tintas do Estado que se diz laico mas que tem um ror de feriados religiosos?


Não propunha o ateu a extinção dos feriados religiosos. Ele queria perceber que o laicismo em letra de lei e com o cunho de políticos dados a um republicanismo intolerantemente laico não podia aniquilar as arreigadas tradições católicas de uma larga fatia das gentes. Era o ateu a perceber que faz parte de uma minoria, que nada contra a maré engrossada pela maioria dos católicos. Na volátil fronteira entre as tradições religiosas e a cultura popular, tudo num caldo que identifica uma certa idiossincrasia nacional.


O ateu não queria banir os feriados religiosos. Recusava essa intolerância. Só queria que a católica não fosse intolerante ao ponto de reclamar a exclusividade dos feriados religiosos para os crentes da sua religião. Que cada um fizesse do feriado o que bem entendesse.


Sem comentários: