8.9.08

Dos fundilhos das calças


Ia no metro. À minha frente, dois ganapos entretidos a apreciar a clientela da carruagem. Bem entendido, iam a apreciar o vestuário. Comentavam a preceito. Fixaram-se numa rapariga que ia ao fundo da carruagem. Diria, à distância, parecer uma daquelas meninas que andam a soletrar a palavra do senhor de porta em porta, mercando a boa nova das testemunhas de Jeová. Na outra fila, era a vez de um rapaz esquálido merecer a atenção sarcástica dos oratórios da boa estética que, ao mesmo tempo que disparavam o comentário jocoso, mastigavam chicletes com estardalhaço.


Foi a minha vez de apreçar os particulares trapos que os rapazes, dir-se-ia críticos de moda, envergavam. Começo por jurar a pés juntos que nada me move contra modas juvenis que irrompem com os anos que passam. De uma forma ou de outra, também passei por um desses modismos de vestuário. As modas, quaisquer que sejam, nunca são involuntárias. Sinto um gosto especial em ver como os adolescentes vão variando os trajes. O relógio do tempo é generoso na estação estival: vai destapando cada vez mais partes generosas de corpos femininos, por exemplo. É uma certa espessura do tempo que cauciona a observação. E se há coisa que me indigna é a indignação de gente muito aperaltada, da cabeça que seja, que acena com a cabeça em tom de reprovação quando se cruza com um jovem que ostenta a "moda esquisita" dos dias correntes.


Os rebeldes continuavam a satirizar a rapariga com ar evangélico e o rapaz acabrunhado, eles emproados à condição de catedráticos dos costumes. E o seu retrato, o que era? Sobressaíam as calças de ganga fartamente esfarrapadas, com meia dúzia de golpes negligentemente em pontos nevrálgicos. Um ar negligé, mas paradoxalmente cuidado. Pois que esta é a moda que está na moda. Mas não fica por aqui o retrato: pois os adolescentes de agora gostam de descair a parte traseira das calças, como se não houvesse cóccix para amparar os fundilhos das calças. Aliás, estes fundilhos acercam-se dos meados das coxas em vez de estarem mais perto do lugar que se julgava anatomicamente feito à medida. O toque de requinte final: à guisa de descontracção fatal, os ausentes fundilhos das calças deixam à mostra uma substancial parcela das cuecas, com uns dizeres refulgentes "Calvin Klein".


Oxalá houvesse espelhos nas casas dos incisivos rapazes que continuavam a bolçar juízos de estética, a desdenhar dos alvos da sua chacota peculiar. É certa a medida relativa quando entramos no campo da estética, pântano viscoso onde se afundam, e sem remissão, os que se julgam penhores dos mais elevados padrões. Era o pecado original daqueles ganapos. Fanfarronice em telhados de vidro. Os telhados de vidro de quem dava o flanco pela grotesca pose. Porventura, apenas um lampejo de tacanha gente incapaz de se imaginar no mesmo tribunal onde tinham sentado as vítimas do seu escarnecimento.


Damos desmedida importância aos trapos que escondem a nudez envergonhada. O pior, é que o vestuário sinaliza tribos particulares a que julgamos pertencer. Como se fosse um sinal de pertença, um dressing code que fala mais alto que mil palavras que queriam expressar o que somos. À minha frente vive um engenheiro que tem amigos que, diria, partilham o mesmo guarda-vestidos, todos tão iguaizinhos. Só que este é um raciocínio que encerra uma armadilha, uma irritante armadilha. Depois de nela apanhado é que percebo como é inútil o exercício de avaliar a estética alheia através da roupa. O pior é ver-me cercado por uma exasperante futilidade. Bem me tento convencer, em arabescos líricos, que o que conta é a profundidade do interior das gentes (há quem lhe chame alma). Logo esbarro de frente contra a dupla irritação: a cada passo que dedico atenção ao vestuário, pareço rivalizar com a improvável espécie de estilistas e afins, uma fauna que glorifico no altar das irritações pessoais.


Saí do metro com uma dúvida: que interesse tinham as manobras satíricas dos dois ganapos vestindo calças sem fundilhos? E que interesse tinham as calças sem fundilhos? O cinismo letal: assim termina um texto que se esgota nas suas interrogações finais. Ou, que é como quem diz, um texto tomado pela futilidade.


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