15.9.08

A cantora das trezentas plásticas, o político que faz dois mil abdominais por dia e o labrego que veste fatos Armani


É espantoso como as massas se deixam inebriar por gente de plástico. Gente artificial, quase irreal. Tudo neles soa a maquinação, entre uma bancada de cosméticos que transfigura (ou, deveríamos dizer, desfigura), cirurgias que recompõem a pele e têm o condão de recuar a aparência no tempo, tratamentos dispendiosos que desligam a idade real da idade biológica. Uma outra forma de serem modelos – aqui modelos noutra acepção da palavra: gente modelar, gente modelada no mais profundo que a artificialidade pode alcançar. E, no entanto, uma plasticidade que atrai a horda, tal o exército de seguidores, o séquito que se desfaz em homenagens mecânicas à plasticidade de quem veneram.


Uma cantora exótica, cinquentona que não o parece, sabe-se lá quantas operações plásticas naquela epiderme. Desconto o género artístico, a descompasso com as minhas preferências estéticas. Daqui sairão palavras apenas sobre a feérica imagem, o cartão de apresentação da artista. O eterno problema do endeusamento de artistas. Os apaniguados que vão de véspera e ficam a dormir ao relento à entrada do recinto onde a artista será consagrada, tributam a imagem cheia de artificialidade que dali exala. Estarão na primeira fila, ainda assim suficientemente longe para não terem pretensões de estarem perto demais da deusa, aos gritinhos histéricos não condizentes com a já nada adolescente idade. Glorificam a artista mais pelo que ela aparenta. Contudo, quantas destas pessoas fariam seu o estilo de vida que ela tem levado ao longo da sua vida?


A plasticidade dominante contagia-se do universo artístico para o mercado político. Já não é novidade: que os políticos se destacam não pela competência, não pelas ideias que escasseiam cada vez mais. Distinguem-se pelo embrulho com que aparecem. Aliás, evite-se perscrutar para além do brilhante papel de celofane que encanta os incautos e os que têm a certeza que o não são, pois só se há-de encontrar o vazio. A ensurdecedora perfeição é que motiva a desconfiança. Tudo tão modelado, cirurgicamente composto, sem detalhes que escapem à equipa que compõe a figura, o altar inacessível de onde exala uma perfeição inumana.


Li há dias: um antigo primeiro-ministro espanhol, que se diz retirado mas que continua a adejar sobre a paisagem política, continua na ribalta. Um exército de seguidores prossegue o encantamento com a fatuidade da personagem. Possivelmente desde as catacumbas da inenarrável imprensa cor-de-rosa dali do lado, tão ao jeito da umbiguista gente que adora a nobreza e a burguesia brasonada, os maiores encómios ao ar informal com que a personagem aparece – ele são as camisas desportivas desabotoadas, as pulseiras "hippy" (?!), até o patético bigode que tem vindo a evaporar-se, o corpo musculado que ostenta uma idade biológica quinze anos abaixo dos cinquenta e cinco que o bilhete de identidade anuncia. Tudo tão bem orquestrado que o "personal trainer" veio dizer que o homem faz dois mil abdominais por dia!


(Parêntesis para a perplexidade pessoal. A matemática não engana. Levo quinze minutos diários para fazer duzentos abdominais. É só fazer as contas. Dois mil abdominais são dez vezes mais. Dando de barato que a progressão geométrica do tempo é difícil de alcançar, o herói da direita espanhola teria que gastar duas horas e meia por dia a fazer abdominais. Sem pingo de inveja, acho que se apanha mais depressa um mentiroso que um coxo.)


Quando vejo a fantasia que envolve estes exemplares da direita bafienta – este, como o presidente francês que se estica em cima de tacões de dez centímetros para não parecer minorca, ou do primeiro-ministro italiano que desfila diariamente uma patetice infantil e aquele improvável ar blasé – entendo que as esquerdas tenham que existir. Há gente que morre pela boca, tal como o peixe. Outros são atraiçoados pela sua imagem tão imaculada, tão perfeita, um penteado sem um cabelo fora do sítio, um cortejo de inanidades que descerram diante do público exemplares de uma perfeição que só pode ser inumana. Esta gente tão direitinha é outro motivo pelo qual ando tão longe desta direita. De repente, porém, uma fulgurante excepção: o presidente da câmara de Londres, excêntrico e com imagem descuidada. Uma personagem mais próxima da gente comum, com os seus pecadilhos e devaneios. Porventura outro produto da imagem bem elaborada. Ao menos, uma imagem que se distancia da imaculada perfeição dos outros.


Por cá, também os há. Por exemplo, o labrego que aparenta aquele ar irritantemente modernaço. Pode envergar fatos Armani que não deixará de ser um labrego. Os ofendidos que perdoem o assomo de "fascismo social", mas quem andou a projectar pela Beira Alta casas do quilate estético há tempos revelado tem o seu cartão-de-visita – o cartão-de-visita de um labrego sem remissão. Não, não é a reconversão urbana, nem as causas modernas património genético do indissociável politicamente correcto, que fazem extinguir os vestígios da labreguice. Esses são inatos, por mais fatos Armani que venham a envolver a figura.


De tanta gente feita de plástico, depois vêm os arautos da modernidade clamar pelo humanismo. Uma contradição de termos.


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