15.8.08

A vida é como um bolso cheio de trocos


A prisão do lugar-comum. Como se caminhos houvesse que desaguam num beco de onde não se avista saída. Indesejável, o lugar-comum, na sua irritante repetição, despedaça-se no pensamento em redor. Por mais labirintos que prossiga, o pensamento esmagado pela simplicidade de um lugar-comum que harpeja melodia sem audácia. Diante do lugar-comum, os querubins da lhaneza pisam as nuvens que adejam sobre a mente sobressaltada. Soçobram as resistências e recolhe-se nos braços a lição do lugar-comum.


Hoje, num sonho, fui visitado por um lugar-comum edificante. A soberania da vida. Da vida sempre tão curta – por mais tempo que seja vivido, por mais intensa e sumarenta que a vida se ofereça. O lugar-comum emparelhado com uma metáfora tonitruante, que não cessava de percorrer os corredores mentais: "a vida é um como um bolso cheio de trocos".


Um bolso cheio de trocos esvazia-se num instante. A menos que haja metódico entesouramento, aprisionados os trocos no mealheiro que há-de ficar reduzido a cacos quando um ávido martelo o desfizer e as moedas escorrerem num arremedo de abastança. Tomara que pudéssemos aforrar vida. A escravidão do tempo na sua materialidade era aqui a dor pungente. E, todavia, a vida pode saltar as barreiras do tempo. Enquistar-se numa moldura que embarga as águas do tempo, como se a vida tivesse as suas próprias albufeiras onde as águas retidas fermentam um prolongamento da vida. O segredo é – sussurrava o mensageiro do lugar-comum – derrotar os céus plúmbeos que se demoram no horizonte. A personagem onírica, de rosto indistinguível, assegurou: somos nós que inventamos os nossos problemas. Na sua ausência, uma montanha frondosa é o regaço da existência em pleno sentido.


O sono despertou do seu sonho. A frase batida, contudo, reproduzia-se no horizonte meditativo. Como se fosse um refrão de uma música escutada à exaustão. Aquela frase podia significar tantas e diferentes coisas. Podia, até, ser caução da insignificância da existência individual – afinal reduzida a uns irrisórios trocos, uns indiferenciados trocos a tilintar na algibeira. A atenção desviada para esta cor enegrecida do lugar-comum em assalto permanente. A desvalorização da vida; ou apenas que não fazemos da vida aquilo que queremos, ela tão autónoma, tão livre para escolher o leito por onde voga. Nós, apenas marionetas das circunstâncias sempre alheias. Nós, os trocos que ou pejam os bolsos ou se gastam com o frémito da luz traiçoeira.


As moedas, as miudezas que simbolizam cada vida, apenas a limalha que sobra dos grandiloquentes projectos que acabam no estirão das lamentações. Uma imagem pintada a cores vivas e, todavia, uma palidez convulsiva: hoje o bolso cheio de moedas e, porventura amanhã, despojado. A vida deserta de si. Um coro ao longe a entoar um lânguido choro, porta-voz do infortúnio. O tempo, esse, chega sempre adiantado às promessas abortadas. O maldito tempo que se esgota, na recusa em ser complacente com a esquadria efémera da vida.


Outro lugar-comum em forma de interrogação múltipla: de que servem as aflições pessoais, o rosto que se vira para acolher os ventos tempestuosos, os pés que teimam em abrasar o caminho sem retorno, ou os pés que caminham maquinalmente rumo ao primeiro precipício encontrado? Qual a serventia das nuvens sempre carregadas que adornam as avenidas do pensamento? Onde está a utilidade dos prazeres da vida, dos afectos, das pessoas resguardadas num canto da alma, se caíram na rotina suicida? Qual o sentido das emoções entoadas no vazio?


Sim: a vida é um bolso cheio de trocos. Tão frágeis – os trocos como, em sua metáfora, a existência. O esbanjamento dos exíguos cobres é a centelha do juízo que se reencontra: só então os olhos alcançam o que foi desperdiçado. Sobretudo quando o corpo já caiu no abismo e não há maneira de inverter a marcha. Os meros trocos, afinal valioso pecúlio, inestimável tesouro que só merece consagração quando está no limiar da delapidação.


Inspirado pelo sonho vestido pelo atordoador lugar-comum, uma lição. Que importa a turba ruidosa no parque aquático, ou o muito francês de subúrbios em vozearia a sitiar as meninges, ou as mulheres espalmando as abundâncias adiposas em reduzidos biquínis, ou os homens de meia-idade exibindo o pujante e arredondado ventre debruçado sobre o temerário calção de banho, ou a donzela que retira de uma perna, com uma pinça, pêlos encravados, ou uma adolescente que cata nas costas da amiga as excrescências da acne juvenil? Há alturas na vida em que a ventura chega por interposta pessoa. É isso, também, a paternidade.


O segredo está em aprender a ser feliz com a felicidade dos filhos.


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