6.8.08

Usar fato e gravata lesa o ambiente


Descoberta mais uma conspiração capitalista contra o ambiente. Só os capitalistas imersos num profundo conservadorismo teimam em envergar fato e gravata. As convenções, as pesadas e inamovíveis convenções, são a coluna vertebral de uma imagem indeclinável. Feita de maneirismos que distinguem um escol dos demais. Não é por acaso que os afortunados penhores da razão, que navegam nas descomprometidas águas da vanguarda, não usam gravata. Nem em cerimónias muito solenes.


Afinal, provado fica que os usos não são inamovíveis como se pensava. A Organização das Nações Unidas (ONU), respeitável e veneranda instituição onde só trabalha gente muito séria, recomendou aos funcionários uma liberalidade outrora impensável: no pino da canícula podem ir trabalhar sem carregarem fato e gravata. Para o seu bem-estar, pois o calor de Nova Iorque suporta-se melhor em refrescantes trajes – e um fato, de verão que seja, mais o adereço da gravata, incómodo fardo que ajuda à destilação de litros e litros de suor. A liberalidade tem um objectivo ambicioso: dar o exemplo para que outras organizações internacionais, governos dos países, organismos públicos e todas as empresas, nos quatro cantos do mundo, sigam o exemplo da ONU. Se o novo uso vingar e o género masculino deixar os fatos e as gravatas em repouso nos armários durante o abrasador estio, poupa-se no ar condicionado, poupa-se nos gases venenosos para a camada de ozono, poupa-se energia. Um passo gigantesco para salvar o ambiente do aquecimento global, facínora espada que pesa sobre a existência do planeta.


Por enquanto, deixar o fato e gravata no armário fica ao critério dos funcionários da ONU. Como se trata de uma das bandeiras empunhadas à exaustão pelos penhores da certeira moral contemporânea, não resisto à interrogação: quantos anos passarão até que a liberalidade passe a imposição?


Refazer costumes é tarefa ditosa. Mas tarefa árdua. Estes são tempos em que coisas há com causalidade invertida. O que antes era a variável independente passa a ser a variável dependente. Contextualizo: aos que frequentam o primeiro ano de faculdades de direito (e aos demais que aprendem Introdução ao Direito), ensina-se que o direito é uma criação que se adapta ao tempo e ao modo de uma determinada sociedade. O direito reage ao desenvolvimento social, não conduz essa evolução. Na linguagem de há pouco, o direito é a variável dependente e a sociedade a variável independente. Impõe-se uma correcção na forma verbal usada na frase anterior: use-se o passado no verbo "ser". Ou, para ser fiel ao que desfila diante dos nossos olhos neste tempo, mudemos a ordem das variáveis. Agora é o direito – o direito fabricado por geniais engenheiros sociais que tudo ordenam à força de decreto – é o direito que conduz a evolução da sociedade. As regras, um universo infinito, pastoreiam a sociedade. Que se acomoda, que remédio, às novas convenções ditadas pela febril actividade legiferante.


Que importam os usos assimilados? Só aos conservadores, que curam de os manter inertes durante muito tempo. Assim como assim, há cinquenta anos todo o homem que se prezasse trazia chapéu de coco. Hoje, tirando um anacrónico velhinho que trabalhou anos a fio numa fábrica destes chapéus em Santa Maria da Feira, quem assina por baixo a torpeza masculina quando os cabelos aparecem desnudados?


Os hábitos mudados fermentam um aluvião de novos comportamentos. Os estilistas, forçados a repensar a moda masculina dos executivos em época estival. Mais uma oportunidade de negócio. Dentro dos escritórios, o ar será respirável. Hoje, até chegarem ao lugar de trabalho, os executivos e subordinados obrigados a trajar fato e gravata suam às estopinhas. O pestilento cheiro a suor, ou as tentativas de o disfarçar com doses cavalares de água-de-colónia, serão um vestígio arqueológico. É só vantagens. Extingue-se o enjoo com a nauseabunda sudação alheia. E diminui o consumo de águas-de-colónia, o que também é ecológico (a indústria de cosméticos usa e abusa de experiências em animais).


Até às minhas finanças isto vai fazer bem: fatos e gravatas pertencem ao vestuário dispendioso. Pausa no entusiasmo e um "mas" a intercalar o ecológico raciocínio: afeiçoei-me aos fatos e às gravatas. As gravatas, um objecto de culto. Vou trabalhar de fato e gravata porque quero. E porque gosto. E se um dia sou proibido de o fazer?


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