20.8.08

Um governo de muita presunção (considerar-se uma “direcção comercial”) e água benta (“de luxo”) – eu diria: uma direcção comercial de lixo


As maravilhas da propaganda. Os spin doctors em acção, tomando conta da agenda, fazendo dos políticos marionetas perfeitas. Limitam-se a ser manejados pelos consultores. Depositam uma confiança cega nos feitores da propaganda, que subiram a esse púlpito depois de terem começado por ser meros fazedores de imagem. Nestes tempos em que tanto se puxa lustro à cidadania, à participação cívica das gentes no meio a que pertencem, esta maneira de fazer política é a negação da cidadania. Uma cidadania que faça jus ao nome não é composta por indivíduos acéfalos, alienados, convidados a olhar para o acessório – a estratégia ideal para afastar os olhares do essencial. Se os olhos se deitassem sobre o essencial e se as gentes não fossem anestesiadas com os truques da propaganda, mal andariam os políticos que sobrevivem à custa destes estratagemas mesquinhos.


Este governo apresenta-se como uma "direcção comercial de luxo". O auto-panegírico merece dissecação. Primeiro, o contexto. A propaganda enaltece o que o governo acha ser uma meritória atracção de investimentos estrangeiros. Os manuais de economia explicam ao detalhe o círculo virtuoso do investimento estrangeiro. Os amadores que nos governam não se dão ao trabalho de desempenhar o papel pedagógico que se lhes exige: em vez de explicarem aos governados o bem que o investimento estrangeiro faz à economia nacional, preferem colocar-se em bicos dos pés e fazer gala dos seus especiais atributos para captar investimentos estrangeiros. Depois confundem funções: desde quando governar um país se assemelha a dirigir (e comercialmente) uma empresa?


Entendo a urticária que a espalhafatosa comparação provoca nas esquerdas mais à esquerda. Governar um país é actividade sagrada. Não merece confusão com a hedionda gestão empresarial. Onde já se viu misturar o sector público com o sector privado? Para mais, dar o flanco da governação ao que pior transpira do sector privado, tão conhecidas as acções lesivas da boa ética constantemente praticadas pelos empresários, essa gente que, sem excepção, não tem escrúpulos. Do lado contrário, bebendo inspiração em princípios diametralmente opostos, quero ser porta-voz do mesmo tipo de indignação. Mas uma indignação com outra matriz: era o que faltava a governação ter semelhanças com a gestão empresarial. Desde quando se confunde amadorismo com profissionalismo? (Ponha-se aqui um "respectivamente", para fazer a correspondência entre as duas frases anteriores.)


É por isso que a ideia do governo como direcção comercial (já me atiro ao auto-qualificativo "de luxo") é quase a cereja no topo do bolo confeccionado por este governo, onde o ingrediente principal é a presunção e o tom encomiástico que usa para provar o seu desempenho. Olho para a gente que nos governa e não consigo deixar de os avaliar como amadores. Ora, uma empresa não sobrevive com uma direcção comercial de amadores. Daí que esta imagem só possa ser uma metáfora para enganar os governados. Mesmo que se aceitasse a ideia, é um tiro no pé: se uma empresa é um corpo feito de várias partes, desde quando a direcção comercial é o cérebro da empresa? É um instrumento, não a parte mais nobre que concebe a estratégia e imprime o rumo da empresa. Quando um governo se vê a si mesmo como direcção comercial, está tudo dito quanto ao erro de perspectiva. Ou é erro de perspectiva, ou simples amadorismo. Nesta altura, já nem consigo perceber o que será pior.


E depois há a muita água benta com que este governo se unge. Como se fosse o sacerdote que faz a unção a si mesmo, coisa tão impensável. É que não chegava sermos informados que o governo se acha uma direcção comercial. Ainda nos rimos com a patética ideia quando, sem fôlego para recuperar a respiração, somos esmagados com o adjectivo que auto-qualifica o governo (perdão, a direcção comercial): "de luxo". Sempre convivi mal com a gabarolice. A falta de modéstia apodera-se dos frágeis, dos inseguros que precisam de se fazer passar por aquilo que não são. Estas auto-avaliações esbofeteadas à cara de quem é governado dizem muito da fraca têmpera de quem as faz.


O problema é que esta gente parece lidar mal com o contraditório, gente que está estruturalmente tomada por um vírus salazarento que teima em adejar sobre a sociedade que somos. O mal deles é a sociedade aberta em que vivem e que tentam condicionar com estes imperativos categóricos que são, quando muito, ditirambos. Quem se auto-avalia com esta presunção não pode fechar a porta ao diagnóstico dos outros. É que os outros são os destinatários do que esta direcção comercial anda a fazer. É por isso que há ali uma letra trocada no adjectivo que qualifica o desempenho desta direcção comercial. No "luxo", o "u" surge onde devia aparecer um "i".



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