29.8.08

Chips, como aos cães (sem desprimor para os canídeos)


Há alturas em que as loas à tecnologia se diluem por causa das intenções dos mandantes. Ou do uso que os mandantes querem dar às tecnologias. A informática e os sistemas de informação, que inovam a uma velocidade vertiginosa, são um sintomático caso de estudo de como algo que é bom pode ser transviado por malévolos caminhos. Acontece quando a gente que governa decide deitar a unha à tecnologia inovadora para manter uma estreita vigilância sobre os governados. Sempre com evasivos pretextos a embelezar um e mais outro acto do Estado policial em que progressivamente vivemos: vendem-nos a ideia de que é em nosso favor que a vigilância se processa. E nós, lorpas, na conversa. Sem percebermos que é tão perigoso passar um cheque em branco a quem pratica entorses graves às liberdades.


Deste governo é preferível abster-me de adjectivações e qualificativos. Para não ser maçador, tantas as vezes que acabo empurrado a escrever sobre o colectivo que governa. Haverá críticas infindáveis que incomodam o convencimento de suas excelências quanto à generosidade e à proficiência da governação. A meu ver, o crime mais lesivo é a irreprimível tentação deste governo ser genuinamente socialista, no que o termo possui de pior quando toca a avaliar o grau de intervencionismo, até onde vai a dose de milagrosa engenharia social.


O recente episódio convoca uma metáfora – a metáfora do concubinato entre o presidente da república e o primeiro-ministro. O primeiro tinha nas mãos uma lei que obriga a instalar um chip nas matrículas dos veículos. Dizem-nos: para combater uma das sementes de criminalidade violenta que, sinal dos tempos modernos, cresce de forma assustadora – o car jacking. É para estarmos sossegados. Lá no governo, um crânio sabedor das maravilhas dos avanços tecnológicos descobriu maneira de acabar com o car jacking. Os meliantes, decepcionados, deixarão este tipo de crime. Porventura arriscarão outra variante de criminalidade, o que há-de fazer queimar alguns neurónios na malta do governo. Decerto apta a descobrir mais uma maneira de impedir as novas expressões de criminalidade que a inventiva mente humana está sempre pronta a experimentar.


Só que a generosidade traz desconfiança no bico. Apetece lembrar o conto infantil do menino e do incêndio que tantas vezes protestou, fazendo cair no logro as pessoas alarmadas. Da única vez que o alarme não era falso, ninguém acudiu à chamada. Pode o governo dar garantias de reserva da privacidade dos proprietários dos automóveis com chip na matrícula, que a desconfiança não se desvanece. É aqui que entra a alegoria do concubinato. No palácio de Belém mora alguém que tem puxado da caneta vermelha por várias vezes, sempre que considera que diplomas do governo vão contra a Constituição. Se calhar tem acertado no alvo errado (porventura, na lei do divórcio). Noutros casos, quando devia ser árbitro dos valores constitucionais – e as liberdades encaixam aqui – prefere não fazer mossa no concubino primeiro-ministro. Teve a oportunidade para mandar para trás esta perigosa lei do chip nas matrículas dos automóveis. Preferiu não transtornar o concubinato. A sacrossanta estabilidade que tanto apregoa. Deve valer mais que os princípios fundamentais – e, repito, as liberdades são-no –, que assim manda às urtigas.


E por que desconfio? Lá de Belém veio uma advertência, o chá que o governo deve tomar: que a lei estabeleça sem rodeios que a instalação do chip não pode servir para invadir a privacidade dos automobilistas. O governo mandou dizer que sim, que vai acautelar os interesses que correspondem às liberdades individuais. Eu não me sossego com esta garantia. Tenho o direito de desconfiar desta gente que já mostrou, por tantas vezes, que não respeita as liberdades. Por mais garantias que sejam dadas, quem assegura que, às escondidas, os funcionários públicos com acesso ao sistema não possam, se quiserem, ficar a saber em que dia, a que horas e por onde tenho andado?


O problema maior está no precedente que se abre com este chip. Os caninos já são obrigados a ser portadores de um chip. O passo seguinte será a aplicação do chip nas matrículas dos automóveis. Que, como se sabe, são conduzidos por pessoas. O incrementalismo leva à interrogação: qual será o pretexto encontrado para incrustar um chip directamente em gente?


Devagar, devagarinho, estes socialistas que mentem às liberdades vão levando a água ao moinho. Policiando as liberdades. Espiolhando vidas. Mal vai a liberdade quando é tutelada por estes mal afamados amantes da "liberdade" – da liberdade com aspas, e das grandes. Sim, gostam da liberdade. Quando são eles a vigiá-la. Gente medonha.


28.8.08

Da crueldade


A cada um a sua tenaz sensibilidade. À medida que amadureço na idade doem-me mais as imagens ou narrações de maus tratos a animais. As gratuitas, na sua sórdida estupidez. Como as que somos educados a entender como necessárias – as experiências médicas e farmacêuticas, ou até as experiências feitas pela indústria cosmética. Sem ser um fundamentalismo ecológico ou qualquer coisa parecida: de uma dor de alma se trata, porventura irrisória aos olhos da maioria. Mas não fundamentalismo. As opções pessoais – o semi-vegetarianismo, a dor pungente quando vejo animais vítimas da crueldade gratuita –, guardo-as para mim. Sem as transformar em campanha de evangelização do próximo. Opções interiorizadas.


Há dias li um número aflitivo: o número de animais em cativeiro sacrificados em, dizem-nos, nome da humanidade. Não guardo na memória o número certo. Só sei dizer que eram demais – muito além do que poderia recear no cenário mais fantasmagórico.


Essa cifra angustiante é o banco dos réus onde se senta a humanidade. Da humanidade que não hesita em brutalizar indefesos animais porque convencionou que é a raça superior entre os seres vivos que habitam o planeta. Manifestações de antropocentrismo como estas deviam envergonhar a raça humana. Essas pessoas que passeiam com jactância a superioridade humana, que tem o seu esteio nos dotes de racionalidade de que somos exclusivos portadores, nem sequer percebem a contradição de termos em que incorrem. Quem assim age vê tombar sobre si o diáfano manto da irracionalidade. Não venham com os argumentos que os usos e costumes vulgarizaram: que é a necessidade de proteger a raça humana, de melhorar a sua forma de viver, nas exigências do combate às doenças que a indústria farmacêutica trava pela humanidade, que se encontra o argumento inconcusso para o sacrifício de animais. O problema é que ao entreabrir-se uma porta, à laia de pretexto, depressa as atrocidades sobre animais inocentes se estendem a outros domínios: a indústria cosmética é o melhor exemplo.


Quando escrevo estas palavras, a memória é assaltada por fotografias de indescritíveis brutalidades infligidas a animais em nome da ciência. Nunca as vi por cá, afinal terra de brandos costumes habituada a olhar para o lado quando sobre ela caem os assuntos que deviam prender a atenção. Essas imagens são divulgadas por associações de defesa dos animais em sítios mais civilizados. Lembro-me delas espalhadas pelos corredores do metropolitano em Londres e nas próprias carruagens. E da reacção espontânea de desviar o olhar das imagens que maceravam os olhos, pungentes imagens. Sem conseguir reprimir o ímpeto masoquista, segundos depois voltava a dirigir o olhar para os autocolantes que gritavam uma criminosa indignidade. Tão enjoado como revoltado, fui vendo do que é capaz a sublime humanidade em seu nome. Dei comigo enjoado. Desta inumana humanidade.


Uma incessante contradição de termos. Quem alimenta estas práticas inverte papéis com a vítima. Como se o algoz fosse a besta, capaz dos actos bárbaros documentados naquelas fotografias de animais dissecados, outros mantidos vivos em pleno sofrimento. O algoz mergulhado na animalesca forma de ser. As suas vítimas, nem sequer com o direito a serem animais, subespécies talvez. A revolta e a náusea que me percorriam cristalizavam uma ideia: a civilização é um conceito muito relativo. Se há quem pisa a dignidade de um animal (que, se não é um ser inanimado, tem essa dignidade) de forma tão gratuita, e se existe um pensamento formatado para condescender com essas atrocidades, mal anda a civilização tão avançada em que vivemos. Retardada humanidade.


Já o disse antes: a cada um a sua sensibilidade, tão variável consoante estados de espírito, educação e tantos outros factores. De dentro da minha sensibilidade brotam interrogações: os carrascos que sacrificam animais por estarem convencidos que é em nome de uma causa nobre, não são visitados por fantasmas quando repousam a cabeça na almofada? Por mais enamorados que estejam da ciência e do seu papel salvífico da humanidade na recorrente investigação que se socorre de experiências cruéis em animais, sentem prazer com os maus tratos prolongados nos animais destinados a padecer nas suas mãos?


Se me dizem que o fazem pelo imperativo maior de corresponder aos desígnios da humanidade, chamo-os covardes. Se têm a pesporrência de me dizer que não sentem remorso, o mínimo remorso que seja, começo a acreditar que a maldade é inata à tão superior raça humana. Talvez por isso ela seja tão superior às outras raças animais. No predicado da maldade gratuita.


27.8.08

As fronteiras da loucura


A complicada cabeça das pessoas. Às vezes, um súbito nevoeiro que entra pela respiração. As pessoas desatam a fazer asneiras, no puro sinal de um incompreensível ensandecimento. Um fogaréu: é sempre num instante que se consome a ilusão da loucura. Quando, apoderados pela demência, todos os poros transpiram uma fatal inimputabilidade.


O que passa pela cabeça de um homem para disparar um revólver à queima-roupa sobre a mulher que é a mãe do seu filho, e logo quando ela trazia ao colo o bebé de quatro meses? No meio da rua, à luz do dia, rodeado de testemunhas que seriam algozes necessários ao chegar a polícia? Inquieta-me, o cenário. Uma angústia atroz ao imaginar o homem com a vista toldada pelo súbito ensandecimento. Ao ponto de arriscar desfazer vidas que são património genético da sua. Que mistérios esconde o cérebro para empurrar uma pessoa para além da fronteira do inteligível, pisando os áridos terrenos onde habita a demência?


De um homem que traz a tiracolo um revólver não se afigura boa têmpera – meu diagnóstico. Porventura errado. Que há ainda quem julgue que a modernidade em que vivemos o não é, modernidade, mas apenas o prolongamento de um qualquer far-west vivenciado pelos olhos diante da tela do cinema ou de ecrãs de televisão. Insisto no diagnóstico: quem é portador de uma pistola enquanto deambula pelas ruas não terá a noção do que é a violência. Do mal que a violência pode fazer noutros, nessa própria pessoa até. Jaz aí um rudimento de loucura à espera de ser detonado? O destempero na corda bamba, a fragilidade silenciosa.


Não sei se existe maldade em estado puro. Nem do mais profundo pessimismo antropológico em que nidifico consigo aceitar que há seres que são maus em sua própria natureza. Não quero fermentar o pessimismo antropológico para além do tamanho que ele já atingiu. Escondo-me detrás de uma explicação, porventura na esperança que um pretexto seja. Não é maldade congénita: é a loucura que invade os que desatam a correr furiosamente pelos labirintos da maldade. É ausente discernimento, uma confusão que faz perder o norte. Desorientação momentânea; mas, num instante desaustinado se descompõem vidas. De quem foi vítima do acto demente e daquele que, por instantes preso à demência, abdica da sua liberdade.


A comprovação que tudo no mundo é desigual, fáceis as destruições do que foi moroso edificar. Uma certa leitura da vida. Uma certa visão do mundo. As cores garridas, as palavras maravilhosas, os gestos impregnados de afecto, uma melodia cheia de encanto – tudo na sua efémera condição. A fragilidade de poderem desmoronar-se com um esforço de nada. É a desigualdade entre o alento construtivo e o impulso doentiamente destrutivo. Nas energias gastas, tempo a fio, a compor algo. Num instante tresloucado, um singular gesto, um gesto possuído por uma dantesca simplicidade, destrona a combustão do que fora edificado. Lá no fundo, uma luz que se divisa: é o próprio tempo, voraz na concepção demorada da construção que esbarra no lapso de uns segundos, uma tempestade colérica que chega e tudo arrasa.


Não sei: se há loucura por todos os lados, para onde quer que olhemos, para onde quer que vamos. O grito aflitivo da demência, furiosamente varrendo da existência o que demorara a ser erguido, como se essa demência tivesse a energia concentrada de uma bomba de neutrões. É a larga mesa envenenada que atraiçoa os que andavam pelos carris da quietude. O pior é que essas mesas envenenadas são como traiçoeiros cogumelos apanhados do bosque por um leigo: só depois de se provar da cicuta de que são feitos é que revolve a loucura exponencial.


A loucura deve ser um imenso quarto branco. Tão imenso, e tão branco, que não tem horizonte. Aos que escorregam para as movediças areias da demência, um só destino: a consumição da alvura do quarto imenso. Onde nem o resgatado discernimento é salvação para o caminho de retorno. Nessa altura, o juízo retomado é uma dor lancinante: na dúvida de saber se habita no terreno do juízo, ou se a fronteira da loucura foi, e sem expiação, dobrada.


26.8.08

Igreja licenciosa, ou o concurso miss freira Itália


Há um teólogo italiano que se cansou do cheiro a bafio nas sacristias. Quer dizer adeus à taciturna igreja que se envergonha de tudo que ressoe a sexualidade. Como se sabe, quem entrega a vida a deus prescinde da sua sexualidade (pedem-nos para acreditar). Daí que não seja estranha a moral proibicionista, diria, castradora, que a igreja quer impor aos crentes (porque acha que pode) e aos ímpios (porque acha que deve, convicta que um dia os trará para o bom rebanho). Que interessa que a igreja católica se passeie, vetusta e anacrónica, pelas avenidas da contemporaneidade? Dirão, do alto da sua incontestável sapiência – aliás abençoada pelo seu deus – que é a sociedade que tem andado mal. O teólogo italiano contesta os obtusos dogmas católicos: propõe-se a organizar um concurso para eleger a mais bela freirinha. A miss freira Itália.


O teólogo de mente aberta fixou as regras do jogo: "ter entre 18 e 40 anos, ser freira ou noviça e enviar uma fotografia "bonita e expressiva, que mostre a beleza [da candidata] tanto no plano estético como no plano espiritual"". Sei o que é uma fotografia bonita e expressiva que seja mostruário da beleza estética. Já fico mais perplexo com o conceito de beleza espiritual. E mais ainda com a possibilidade da beleza espiritual ser desnudada através de uma fotografia. Pois não somos instruídos que essa é a beleza interior, e que fotografia alguma a consegue revelar? Porventura não será o retrato das irmãs espalhadas pelos conventos italianos a decifrar essa importante parcela da futura miss freira Itália (já agora: qual é a ponderação para a votação final?). À fotografia enviada terão as freirinhas que adicionar "um pequeno relato das suas vidas e das suas personalidades".


Portanto, desenganem-se os que têm fantasias com freiras nuas. O mais que poderão ver no sítio criado para o concurso (www.padreantoniorungi.myblog.it) são caras larocas, com ou sem hábito é detalhe não informado pelo organizador do criativo evento. Teremos direito a retratos de rostos insinuando sensualidade? Haverá freiras capazes de ultrapassar a castradora timidez, libertando-se para fotografias com um olhar furtivo que traz a pulga atrás da orelha? A mais improvável devassidão acolhida numa tão inocente fotografia?


Os dogmáticos, decerto, acenando a cabeça em tom reprovador. "Brincar com coisas sérias, isso não se faz", dirão. As corajosas noviças e freiras convidadas a este desaforo. E ainda por cima um desaforo que parte de alguém que está dentro da igreja. Se viesse de ateus, daqueles que se entretêm a fazer do anticlericalismo um modo de vida, nem valia a pena pestanejar diante da afronta. Os dogmáticos, tementes pela sanidade mental das freiras e noviças quando tomarem conhecimento do desafio que lhes foi lançado. Quem sabe se isso não vai despertar um apetite reprimido pelo voto de castidade a que as freirinhas se entregaram. Há remédio bastante para tamanho malefício: para tão inopinada ideia, a vergastada da canónica censura. Para repor a normalidade. E asfixiar inoportunos diabinhos libidinosos que estivessem a acossar a consciência das monjas. A castração não tem retorno.


Talvez por isso tenha confirmado, entretanto, que o dito blogue que ia arquivar as fotografias das freiras candidatas já não consta. A Santa Sé deu instruções ao teólogo para não blasfemar? É que a igreja católica só tem respeitabilidade se for soturna, tão empalidecida com o negrume dos hábitos que os sacerdotes trajam. E assim se expõe à chacota: tivesse rins, dando a sua bênção a tão criativa ideia – ou, pelo menos, assobiando para o lado sem a reprovar com a habitual veemência – e a cúpula do Vaticano não estaria a enviar sinais de que dá tanta importância ao (parece, abortado) concurso da miss freira Itália.


O que me leva a pensar que haverá padres, bispos, arcebispos, cardeais e por aí fora que não terão querido suportar a provação. O desafio de meterem debaixo da cama, à socapa, um calendário que mostra, para cada mês do ano, uma cara das que seriam as felizes contempladas entre a irmandade que se candidatara a miss freira. Ou isso, ou tementes que os abrutalhados camionistas se enamorassem pelas noviças e menos noviças trazidas para as luzes da ribalta, deitando ao lixo os calendários onde abundam avantajados corpos femininos em plena nudez. As inocentes irmãzinhas passariam a ser amanhadas na alarvidade de camionistas e afins.


No Vaticano, os tormentos da cúria não têm fim. Até parece que o mundo inteiro conspira, e vinte e quatro horas por dia, contra a igreja.


25.8.08

João Carlos Espada andava esquecido


É verdade que deixei de ter paciência para ler o Expresso. E para ler João Carlos Espada. Ou vice-versa, para o caso nem interessa. Este fim-de-semana cheguei à que continua a ser a sua crónica semanal no Expresso, onde destila verdades insofismáveis que envergonham um liberal de boa cepa. Coisa que o estudioso da teoria política não é, por mais que faça de si o embaixador nacional do liberalismo. Quem vem de onde Espada veio – ideologicamente falando – só pode, e quando muito, ser um liberal convertido. Neste caso, com a mácula dos calhamaços de extrema-esquerda que, devotamente, devorou – literatura que está nos antípodas do liberalismo de que Espada pensa ser expoente máximo, invocando amizades com Popper e Dahrendorf e Isiah Berlin, como se esses cartões-de-visita o transformassem no cardeal do liberalismo em lusas terras.


Valha a verdade – e agora viro-me para o tema que traz hoje à escrita – que todos temos o direito a provocar gargalhadas nos outros. Mesmo quando essa não é a nossa intenção. E que a ninguém seja recusado o direito de pertencer a uma tribo particular e de se orgulhar dessa pertença, trazendo a público escritos encomiásticos dessa pertença. Espada faz gala da sua condição de sócio de um clube de gentlemen em Inglaterra. Depois exporta para esta terra de lúcidos machos latinos a sua experiência ao mesmo tempo snob e descontextualizada. Espada devia ser inglês. Mas não há como renegar a terra onde se nasceu. E mesmo que ela seja renegada, através de requerimento que convoca a apátrida condição, o lugar onde a pessoa nasceu fica registado para todo o sempre. A menos que um deslize estalinista – os fundilhos da memória… – seja o apetitoso pretexto para refazer a biografia.


A provar que Agosto é um mês em que as pessoas, estando de férias, se dedicam ao supérfluo, até o académico que agora também é consultor do presidente da república não consegue reprimir os devaneios que semeiam a boa disposição no leitor. Nesta semana perorou sobre o dressing code no dito clube de cavalheiros londrino que frequenta. É o malfadado calor que convida a deixar a obrigatória gravata em casa, para o corpo dos cavalheiros não suar em estopinhas e um odor desagradável tomar conta de ambiente tão selecto. No fim da croniqueta de Espada, os leitores saem doutorados em clubes de gentlemen mais as regras sobre o código de vestuário.


Como resistir às deliciosas palavras de Espada? Numa entrada de rompante, aprendemos que "(u)m dos mais difíceis temas de Verão é o da influência da temperatura no código de vestuário". Qual guerra na Geórgia, ou a crise económica internacional que traz a reboque a recessão, ou a desaustinada criminalidade violenta que monopoliza noticiários, ou a medíocre prestação dos atletas olímpicos mais a tempestade que isso causou, uma espécie de introspecção da nacionalidade? Depois, o paladino de um certo British way of life junto da boçal portugalidade desfia as condições exigentes em que os fleumáticos lordes são autorizados a frequentar o clube desprovidos de gravata e, nos raros dias de canícula nas ilhas britânicas, até sem o bom amigo casaco. Um acto de generosidade que a tradição admite. Mas é aí que a generosidade encontra os seus limites. Para que não haja dúvidas, ou tentações para estender a excepção, as regras são claras: "nestas excepcionais ocasiões, os cavalheiros sem casaco devem usar camisas de manga comprida abotoadas no punho. E (…) «T-shirts e outras camisas sem colarinho, mesmo quando usadas com casaco, nunca são permitidas no Clube»".


Enganei-me quando pensava que o risível estava no seu auge. Espada conta que decidiu promover um "inquérito" para tomar o pulso às razões do dressing code. Tropeçou no barman grego radicado em Londres há longos anos. À pergunta "por que razão devem os 'gentlemen's clubs' dar tanta importância ao código de vestuário?", o bom homem teve uma resposta de uma simplicidade desarmante: "(p)orque, caso contrário deixariam de ser 'gentlemen's clubs'". A outra inquirida foi uma esbelta búlgara que trabalha na recepção do clube. A menina, apesar de estar há poucos meses em Inglaterra, já tinha a lábia toda: "(é) claro, disse-me ela, trata-se de um 'gentlemen's club'".


Moral da história: não se questionam as tradições. Como quem diz, "sim, porque sim". A isto se chama racionalidade em ponto de rebuçado. E mais: o que interessa ao leitor do Expresso o dressing code dessa coisa para nós tão extravagante como deslocada como são os ingleses clubes de cavalheiros? Onde quer Espada chegar? Que a boçal portugalidade devia aprender com este British way of life? Ou é apenas Espada a olhar-se ao espelho e a gostar muito do que vê?


A risível narração do consultor político do inquilino de Belém resgatou-me da sua ausência. Estes pedaços que Espada exporta para a lusitânia são sempre profilácticos: rir, e muito, nunca fez mal a ninguém. Descansem, todavia, alguns dos que mais satirizam a quadratura espadiana: ele há outras tribos que também têm o seu particular dressing code. E não é menos folclórico. Honra lhes seja feita: ao menos não vêm para as páginas dos jornais com um arrazoado de como fazer rastas no cabelo e envergar larguíssimos macacões de ganga, sem esquecer, até no Verão, o indispensável lenço palestiniano.


22.8.08

O mar das patranhas


Há mentirosos compulsivos. Vendedores de banha da cobra. A suprema desfaçatez de desdizer o que foi dito lá atrás e que ficou registado nos arquivos, teimando em distorcer a realidade. São mestres maiores em fazer da mentira verdade e da verdade mentira. Vivem de uma estranha cumplicidade com quem representam: mentem para cativar a simpatia. Paradoxalmente, os que levam a palma no campeonato do engodo são os que vingam nas preferências dos que são enganados. Dir-se-á: são as regras do jogo. E, se o povo escolheu os que tanto lhe mentem, que ninguém ouse levantar um dedo contra a democrática e inquestionável sentença das urnas.


Provavelmente, o povo nem chega a perceber o chorrilho de patranhas que engole a cada dia. Provavelmente, inebriado pelo embrulho fantasioso com que lhe é servida a realidade pelos prestidigitadores de serviço, aplaude-os ainda que seja destinatário da fileira de lérias servidas numa deslumbrante vestimenta. Aos viandeiros da falácia instalada, a distinção pelo mérito da mentira: a donairosa vitória com o selo do eleitorado. Nisto, fico convencido que a política é a arte de tisnar a realidade, mascará-la com os oportunos enfeites que transformam um deserto num faustoso oásis. Esta urgência em celebrar a mentira, só para glorificar feitos que o não são, só para somar pontos na contabilidade eleitoral, é o perigoso caminho da decepção da democracia. Os seus fautores, esses, ineptos para a função. E, ademais, verdugos da democracia.


Os exemplos, uns atrás dos outros – o altar das patranhas à exaustão, tanta a insistência nelas que se faz crer que a mentira se transforma em verdade. É a miragem de cento e cinquenta mil empregos que iriam ser criados, por artes de magia, durante esta legislatura. Aproximando-se o ano de eleições, ao menos seja feita honra ao maestro do bando de mentirosos que resgatou a promessa eleitoral: há dias veio defender a dama, anunciando que só faltavam uns escassos milhares de empregos para atingir a meta. Para sua grande infelicidade, há quem não goste do estilo infalivelmente mentiroso e despedace a verdade das suas mentiras. Logo a seguir houve demonstrações cabais da clamorosa mentira que nos é pespegada. Nas elucidativas palavras de Santana Castilho (no Público de anteontem):


"Reaparecendo na ribalta política, Sócrates tratou os números com a desenvoltura que tristemente lhe conhecemos, como se fôssemos todos estúpidos ou distraídos. (...) Disse, com o seu habitual optimismo de plástico, que, desde Março de 2005, foram criados 133.000 postos de trabalho. Mas não disse quantos se perderam. É preciso topete para afirmar publicamente que está quase cumprido o objectivo de originar 150.000 novos empregos até ao fim da legislatura, quando os desempregados são 7,3 por cento da população. (...) Quando Sócrates tomou posse, em 12 de Março de 2005, 413.000 portugueses estavam desempregados. No fim do segundo trimestre de 2008, esse número tinha descido para 409.900. Durante a legislatura foram, portanto, recuperados 3100 postos de trabalhos perdidos. Para cumprir o objectivo faltam-lhe recuperar 146.900. Repito: é preciso topete para dizer que está a 17.000 do objectivo".


Outro exemplo: o celebrado computador portátil Magalhães, apresentado como pedrada no charco, um marco mundial. Logo a seguir, um mar de gente veio provar, e com provas irrefutáveis, que o "Magalhães" já é produzido, e desde há algum tempo, noutros países. Claro que nesses lugares não se chama "Magalhães". Para abrilhantar mais um episódio histórico – e tantos são neste consulado que um dia destes é a própria história que se reinventa pela mão do timoneiro – até o presidente da Intel foi convidado para a patranha. Aposto que ninguém lhe contou os pormenores da encenação propagandística. E nem o discurso do relações públicas da portugalidade boçal, à boa maneira dos gurus do marketing que se passeiam descontraidamente de um lado para o outro do palco, terá sido traduzido para inglês. Só para que o presidente da Intel não desse conta do logro para que foi convidado como actor principal involuntário.


O exemplo derradeiro: quem escuta o timoneiro e perorar sobre o estado da economia, há-de ficar convencido que somos uma lança espetada no largo terreno incendiado pela crise internacional. O cantinho nos fundilhos da Europa terá, no optimista diagnóstico de sua excelência, escapado ao algoz da crise. E, no entanto, o seu grande amigo presidente da Venezuela confidenciou lá na sua terra que o amigo lusitano lhe terá dito que a economia portuguesa está estagnada. Donde, só resta perguntar: quem está a mentir?


Mas neste reino apalhaçado e inerte, continua tudo feliz e contente, todos banhados no mar de patranhas em que somos convidados a estadia demorada. Esse mar que tem o condão de nos anestesiar, incapazes depois para discernir a mentira. É neste jogo que me recuso a participar. Pois se a mentira é ingrediente congénito a todos os actores, venham eles de que quadrantes vierem, recuso-me com a minha anuência a caucionar patranhas sucessivas. Para não ficar refém do estigma da mentira como matriz da acção política.


21.8.08

Quando a muita erudição nos põe a falar com as paredes


Um debate: quem faz ciência, como a deve comunicar? Embebida de formalismo, decerto, pois há regras mínimas a respeitar, uma impressão digital da ciência honesta. Mas como deve ser a escrita que comunica os resultados da investigação científica? Arrevesada, inexpugnável ao leigo que se aventura pelos meandros de uma qualquer área que não domina?


Vulgarizou-se o entendimento que as comunidades científicas comunicam em círculo fechado. São um cluster encerrado sobre si mesmo, num hermetismo semântico que põe o seu discurso no domínio da inteligibilidade a quem não faça parte dessa comunidade particular. Com um preço que agora se discute: ciência que se coloca nos píncaros da sabedoria, só que uma ciência tão distante, tão longe do alcance da compreensão geral, que se expõe às fatais interrogações: e esta ciência serve para quê? E para quem? A resposta à segunda pergunta abre o caminho à primeira: parece que há muita ciência feita para auto-comprazimento pessoal dos investigadores, que palmilham domínios que parecem inúteis ao cidadão comum. Logo, uma ciência que se arrisca a levar com o rótulo da inutilidade.


Por dever profissional, leio bastante produção científica. Em grande parte dos casos, textos que mostram erudição, numa escrita que tem tanto de elegância formal como de ininteligibilidade para a pessoa comum. Também é verdade que essa ciência mais erudita não se destina a ser consumida pela pessoa comum, porventura nem sequer pelo autodidacta que entra por terrenos que lhe são desconhecidos e o faz por curiosidade de conhecimento. Daí que os ortodoxos da ciência, os cultores do conservadorismo na maneira de fazer ciência, defendam a sua dama: as comunidades científicas comunicam para dentro, não para o exterior. Exige-se-lhes que respeitem os cânones a que a ciência obedece. Desses cânones faz parte o discurso elaborado, a semântica hermética. Algumas vezes, uma ostentação de erudição que roça a vaidade intelectual. É como se através do texto os leitores sejam esmagados pela enorme erudição dos investigadores que são seus autores. Um gesto irreprimível, o de mostrar tão elevada sabedoria. A erudição como termómetro intelectual e, por vezes, cultural também. Ou apenas uma vaidade fátua.


O debate aqueceu com a deriva de alguns académicos que ousaram romper com a monotonia instalada e produziram literatura que procura fazer chegar a sua ciência ao público, ao público não especializado. Descerram as janelas do enclausuramento científico, divulgando a ciência a quem queira entender os seus rudimentos. Considero o desafio maior que um académico tem pela frente. É que comunicar entre pares, usando o mesmo código semântico de sempre, com as fórmulas por demais vulgarizadas, faz parte da sua rotina. Ficamos formatados para a linguagem hermética que só os pares entendem. Eis porque a divulgação da ciência ao público é o repto mais exigente: porque limita o académico a um discurso simples, escorreito, numa articulação de ideias que traduza clareza. Ou a divulgação esbarra na falta de bases dos leigos.


O problema é que a simplicidade é uma miragem. Talvez por estarmos habituados à escrita hermética, a sermos obrigados a fazer prova de vida da nossa tão elevada erudição, quando se ensaia a simplicidade da escrita fracassa a maior parte das tentativas. Contra mim fala esta impressão. Quando revejo a produção científica passada, dou com textos que não pertencem à inteligibilidade da pessoa comum. Textos que hoje não escrevia dessa forma. Acontece com a maior parte dos investigadores: quanto mais novos, maior a presunção intelectual que os leva a exagerar na ostentação de erudição. Como se fosse necessário impressionar os pares com insígnia académica mais elevada. Descontados alguns casos de dinossauros da academia que teimam em prolongar a assombrosa erudição vida fora, o amadurecimento enxuga os textos que resultam da produção científica. Simplificam-se, depuram-se. De tal maneira que o desafio maior consiste em emprestar simplicidade à ciência que se revela nos textos produzidos.


O esforço de simplicidade corresponde à democratização da ciência? E, por aí, passará alguma demagogia – pois que a simplificação semântica pode-se traduzir num caminho de sentido único se houver poucos leigos interessados em tomar contacto com essa ciência? Responder sim ou não é um detalhe insignificante. O que importa é despir a ciência do seu hermetismo, diluir os vestígios de erudição que apenas conseguem roubar espaço ao pragmatismo da ciência, desviando as atenções dos leitores para exibições inúteis de sapiência.


O que é frustrante é perceber, ao terminar um texto, que raras vezes se atinge a desejada simplicidade. Eis o paradoxo maior: fácil é escrever difícil, difícil é escrever fácil.


20.8.08

Um governo de muita presunção (considerar-se uma “direcção comercial”) e água benta (“de luxo”) – eu diria: uma direcção comercial de lixo


As maravilhas da propaganda. Os spin doctors em acção, tomando conta da agenda, fazendo dos políticos marionetas perfeitas. Limitam-se a ser manejados pelos consultores. Depositam uma confiança cega nos feitores da propaganda, que subiram a esse púlpito depois de terem começado por ser meros fazedores de imagem. Nestes tempos em que tanto se puxa lustro à cidadania, à participação cívica das gentes no meio a que pertencem, esta maneira de fazer política é a negação da cidadania. Uma cidadania que faça jus ao nome não é composta por indivíduos acéfalos, alienados, convidados a olhar para o acessório – a estratégia ideal para afastar os olhares do essencial. Se os olhos se deitassem sobre o essencial e se as gentes não fossem anestesiadas com os truques da propaganda, mal andariam os políticos que sobrevivem à custa destes estratagemas mesquinhos.


Este governo apresenta-se como uma "direcção comercial de luxo". O auto-panegírico merece dissecação. Primeiro, o contexto. A propaganda enaltece o que o governo acha ser uma meritória atracção de investimentos estrangeiros. Os manuais de economia explicam ao detalhe o círculo virtuoso do investimento estrangeiro. Os amadores que nos governam não se dão ao trabalho de desempenhar o papel pedagógico que se lhes exige: em vez de explicarem aos governados o bem que o investimento estrangeiro faz à economia nacional, preferem colocar-se em bicos dos pés e fazer gala dos seus especiais atributos para captar investimentos estrangeiros. Depois confundem funções: desde quando governar um país se assemelha a dirigir (e comercialmente) uma empresa?


Entendo a urticária que a espalhafatosa comparação provoca nas esquerdas mais à esquerda. Governar um país é actividade sagrada. Não merece confusão com a hedionda gestão empresarial. Onde já se viu misturar o sector público com o sector privado? Para mais, dar o flanco da governação ao que pior transpira do sector privado, tão conhecidas as acções lesivas da boa ética constantemente praticadas pelos empresários, essa gente que, sem excepção, não tem escrúpulos. Do lado contrário, bebendo inspiração em princípios diametralmente opostos, quero ser porta-voz do mesmo tipo de indignação. Mas uma indignação com outra matriz: era o que faltava a governação ter semelhanças com a gestão empresarial. Desde quando se confunde amadorismo com profissionalismo? (Ponha-se aqui um "respectivamente", para fazer a correspondência entre as duas frases anteriores.)


É por isso que a ideia do governo como direcção comercial (já me atiro ao auto-qualificativo "de luxo") é quase a cereja no topo do bolo confeccionado por este governo, onde o ingrediente principal é a presunção e o tom encomiástico que usa para provar o seu desempenho. Olho para a gente que nos governa e não consigo deixar de os avaliar como amadores. Ora, uma empresa não sobrevive com uma direcção comercial de amadores. Daí que esta imagem só possa ser uma metáfora para enganar os governados. Mesmo que se aceitasse a ideia, é um tiro no pé: se uma empresa é um corpo feito de várias partes, desde quando a direcção comercial é o cérebro da empresa? É um instrumento, não a parte mais nobre que concebe a estratégia e imprime o rumo da empresa. Quando um governo se vê a si mesmo como direcção comercial, está tudo dito quanto ao erro de perspectiva. Ou é erro de perspectiva, ou simples amadorismo. Nesta altura, já nem consigo perceber o que será pior.


E depois há a muita água benta com que este governo se unge. Como se fosse o sacerdote que faz a unção a si mesmo, coisa tão impensável. É que não chegava sermos informados que o governo se acha uma direcção comercial. Ainda nos rimos com a patética ideia quando, sem fôlego para recuperar a respiração, somos esmagados com o adjectivo que auto-qualifica o governo (perdão, a direcção comercial): "de luxo". Sempre convivi mal com a gabarolice. A falta de modéstia apodera-se dos frágeis, dos inseguros que precisam de se fazer passar por aquilo que não são. Estas auto-avaliações esbofeteadas à cara de quem é governado dizem muito da fraca têmpera de quem as faz.


O problema é que esta gente parece lidar mal com o contraditório, gente que está estruturalmente tomada por um vírus salazarento que teima em adejar sobre a sociedade que somos. O mal deles é a sociedade aberta em que vivem e que tentam condicionar com estes imperativos categóricos que são, quando muito, ditirambos. Quem se auto-avalia com esta presunção não pode fechar a porta ao diagnóstico dos outros. É que os outros são os destinatários do que esta direcção comercial anda a fazer. É por isso que há ali uma letra trocada no adjectivo que qualifica o desempenho desta direcção comercial. No "luxo", o "u" surge onde devia aparecer um "i".



19.8.08

Olimpíadas: para provar a mediocridade nacional


Parto da interrogação do texto de ontem: os jogos olímpicos são uma competição entre países? Como sei que nisto remo contra a maré – eu convencido que se trata de uma competição entre atletas que se procuram superar para atingir o Olimpo; a maioria segura que são os países que competem entre si, procurando escalar a tabela das medalhas na sofrível imagem de brio e garbo pátrios – vou, por um momento, saltar para a barca onde habita a maioria. Dou por assente, por conveniência, que são as nações que rivalizam em cada olimpíada.

O que é a portugalidade a cada olimpíada que passa? Uma extensa comitiva de atletas e, no regresso, um par de medalhas. De quatro em quatro anos, no rescaldo de uns jogos olímpicos, aquelas pessoas que medem o pulso à têmpera desportiva dos patrícios olímpicos têm escassos motivos de orgulho. Como lembrava ontem, na tabela que ordena as medalhas "conquistadas pelos países" há muitos países do terceiro mundo que nos passam a perna. Será sintomático que no regresso dos atletas, a pátria celebre ruidosamente os feitos dos atletas que ganharam medalhas. Os outros ficam esquecidos. Não digo que esteja errado: os primeiros é que merecem os aplausos pelo feito. Afinal, destacam-se entre a mediocridade geral. Só que também digo que a festiva pátria não deve esquecer os que foram às olimpíadas apenas para participar.


Estes são os atletas que saem da lusitana terra cheios de contentamento por irem participar. Alguns enfatizam: terem feito os mínimos que dão acesso aos jogos olímpicos é a sua medalha particular. Lamentavelmente, estes feitos pessoais não entram na contabilidade que ordena os países na compita global. Ao povo, nesta altura muito exigente mas apenas com os outros – com os atletas olímpicos que julgam em representação do "país" – pouco interessam os feitos pessoais dos atletas que não passam da cepa torta da competição olímpica. E como cresce a mentalização cidadã para o destino dos impostos pagos, recrudesce a incompreensão pela numerosa comitiva que vai até aos jogos olímpicos à custa do erário público só para fazer o papel de figurante. Para que esses atletas, que não passam da mediania olímpica, sintam brio pessoal por terem sido figurantes nuns jogos olímpicos.


Atento às notícias, noto que manhã após manhã os jornalistas transmitem com pesar as más novas que não exultam o brio pátrio. Os atletas lusos ficam-se pelas eliminatórias. Os atletas lusos, quando chegam às finais, terminam mais próximo do último classificado (quando não marcam lugar na derradeira posição). Outros desistem, vergados pela responsabilidade da participação nos jogos olímpicos. Há até atletas que fizeram check in para uma medalha e que não conseguiram suportar o peso da responsabilidade, baqueando de quatro e nem sequer chegando às finais. Ou o ridículo das desculpas de mau pagador para lamentáveis desempenhos: um atleta tomado pelo pânico quando entrou no estádio repleto de público a confessar que as pernas fraquejaram, uma praticante de judo a queixar-se da parcialidade dos árbitros, um atirador do peso que, com ar que tinha tanto de folgazão como de imbecil, revelou que de manhã gosta mais de ficar na cama.


O que interessa é que nas olimpíadas os atletas competem entre si. O que conta, no final, são os resultados – e não as desculpas, os pretextos, os súbitos bloqueios psicológicos. Acho sintomático o bloqueio psicológico que parece amaldiçoar muitos atletas lusitanos. É que os de outros países estão à altura das responsabilidades. Será sinal da fraqueza de espírito, a imagem de um povo afogado na sua mediocridade congénita? Fracos de espírito, campeões na demissão das responsabilidades pessoais que repousam sobre os nossos ombros. Na nossa demissão, deixamos os louros para os outros.


Uma outra perspectiva do problema, um diagnóstico menos cruel. É errada a crucificação dos atletas que fracassam e depois metem os pés pelas mãos no relambório das desculpas de mau pagador. Como é errado admoestar os atletas que navegam pelas posições últimas de cada modalidade, ou os que nem sequer ultrapassam as eliminatórias. Em cada competição há um vencedor, mais dois que vão ao pódio e regressam com medalhas ao peito. E depois há os figurantes. Não há olimpíadas sem figurantes. Que ninguém dispute a máxima: dos fracos não reza a história. Sem eles, a glória dos vencedores perde sentido. Honra, pois, aos figurantes. A maneira óbvia de atenuar a mediocridade pátria que se passeia a cada olimpíada.


18.8.08

Os jogos olímpicos, uma competição de países?


Devo ser ingénuo, mas não percebo a lógica dos jogos olímpicos. Ao fim de cada dia, entra-se-nos pelos olhos uma tabela que ordena os países pelo número de medalhas conquistadas. Como se fosse uma pugna entre países. Para se saber, no final dos jogos, qual a nação mais proficiente nos feitos desportivos. A perfídia das nações, e a malvadez dos nacionalismos, toma conta das olimpíadas. Uma aleivosia para os feitos dos atletas. Um esforço quase sobre-humano, para no fim de contas a medalha que arrecadam pertencer ao país que os viu nascer. O tamanho de uma enorme ingratidão.


Repito: devo ser ingénuo. Achava que nos jogos olímpicos competem as façanhas dos atletas. As façanhas individuais, quando o desporto é feito do desempenho de um só atleta, com as capacidades maximizadas pelo treinador. Ou os feitos colectivos, quando a medalha ostentada à lapela resultou do trabalho em equipa. Ainda assim, o somatório de feitos individuais. Donde, a interrogação: quem pode, em honestidade, julgar que uma medalha seja do país A se quem suou por ela foi um atleta, ou uma equipa de atletas, que por acaso nasceu (ou não…) no país em causa?


Confesso: o tema estava agendado há algum tempo. Só estava à espera que um dos imensos atletas olímpicos lusos subisse ao pódio em garbosa ostentação de uma medalha. Após muitas promessas que terminaram em amargas decepções, há um par de horas a nação pôde exultar de contentamento – aquela parte da nação que retardou o sono madrugada dentro, que a outra parte só quando acordar vai ser presenteada com a boa nova: a rapariga do triatlo chamou a si a medalha de prata. O dia vai correr bem. Assim como assim, a portugalidade cheia de orgulho. A pátria já não vai sair de Pequim virgem de medalhas. Por acaso nem interessa que haja tantos países, daqueles que costumam aparecer na angustiada rua do terceiro mundo, que fiquem à frente na tabela final das medalhas. Nessa altura, as mágoas varridas para segundas núpcias para não toldarem o faustoso garbo de umas escassas medalhas que os lusos atletas hão-de mostrar, para orgulho pátrio, à chegada ao aeroporto de Lisboa.


No entanto, continuo sem perceber porque se diz, no final de cada olimpíada, que "Portugal conquistou tantas medalhas". No triatlo, por acaso foram os não sei quantos milhões de lusitanos espalhados pelo mundo que carregaram Vanessa Fernandes na prova de natação? Foram eles que imprimiram o ritmo na prova de ciclismo? Foram eles que a empurraram rumo à medalha de prata na prova de atletismo? Curiosa ficção, esta: de vez em quando, cardiologistas saltam para a praça pública denunciando um povo sedentário, carente de exercício físico que explica por que tanta gente morre de doenças cardiovasculares. Contudo, somos atletas de sofá, partilhando com os verdadeiros atletas os seus feitos olímpicos. Para a desfaçatez ser total, demitimo-nos da condição de atletas de sofá quando os patrícios que prometiam medalhas saldam a participação olímpica com um decepcionante vazio. Nessa altura conseguimos ser incisivos críticos dos que fracassaram. Somos incapazes de perceber que a ajuda virtual que a nação inteira deu ao atleta fracassado foi insuficiente.


É pena que os jogos olímpicos não valorizem os feitos individuais dos heróis do certame – os que são mais fortes, os que chegam mais longe, os que chegam mais alto. Quando a sagração destes heróis tem lugar, é só para glorificar os heróis que se distinguem entre o escol: aqueles que regressaram cobertos de ouro. Fora disso, os olímpicos são tratados como se fossem uma competição entre países. Servem para ensaboar o ego pátrio. Um terrível erro de perspectiva. Aplicando ao caso de Vanessa Fernandes: só pelo azar de ter nascido portuguesa, é um abuso considerar que a medalha que ganhou pertence à lusitana pátria. É um insulto às privações que passou para chegar ao estatuto de atleta de alta competição.


Dirão alguns, em réplica: é o erário público que paga a deslocação da comitiva olímpica; logo, as medalhas com que regressarem são património da portugalidade. Outro erro de análise: o esforço de um atleta que resulta num lugar medalhado não pode ser a compensação pelo investimento do erário público. Como se fosse possível comprar um produto chamado desempenho desportivo. Por acaso os atletas são uma mercadoria com preço – o preço do investimento às custas do erário público?


O "espírito olímpico" é uma farsa. Não são as glórias individuais, os feitos dos atletas, que são exaltados. O que interessa é a vã glória das nações que se digladiam na tabela que contabiliza as medalhas. Este espírito olímpico é uma maneira pacífica de prolongar as guerras entre os países. E de aguçar o patético espírito xenófobo à medida que gente com passaporte igual traduz em medalhas o desempenho atlético. Já há muito me desenganei. Não perco um minuto com transmissões de provas olímpicas.


15.8.08

A vida é como um bolso cheio de trocos


A prisão do lugar-comum. Como se caminhos houvesse que desaguam num beco de onde não se avista saída. Indesejável, o lugar-comum, na sua irritante repetição, despedaça-se no pensamento em redor. Por mais labirintos que prossiga, o pensamento esmagado pela simplicidade de um lugar-comum que harpeja melodia sem audácia. Diante do lugar-comum, os querubins da lhaneza pisam as nuvens que adejam sobre a mente sobressaltada. Soçobram as resistências e recolhe-se nos braços a lição do lugar-comum.


Hoje, num sonho, fui visitado por um lugar-comum edificante. A soberania da vida. Da vida sempre tão curta – por mais tempo que seja vivido, por mais intensa e sumarenta que a vida se ofereça. O lugar-comum emparelhado com uma metáfora tonitruante, que não cessava de percorrer os corredores mentais: "a vida é um como um bolso cheio de trocos".


Um bolso cheio de trocos esvazia-se num instante. A menos que haja metódico entesouramento, aprisionados os trocos no mealheiro que há-de ficar reduzido a cacos quando um ávido martelo o desfizer e as moedas escorrerem num arremedo de abastança. Tomara que pudéssemos aforrar vida. A escravidão do tempo na sua materialidade era aqui a dor pungente. E, todavia, a vida pode saltar as barreiras do tempo. Enquistar-se numa moldura que embarga as águas do tempo, como se a vida tivesse as suas próprias albufeiras onde as águas retidas fermentam um prolongamento da vida. O segredo é – sussurrava o mensageiro do lugar-comum – derrotar os céus plúmbeos que se demoram no horizonte. A personagem onírica, de rosto indistinguível, assegurou: somos nós que inventamos os nossos problemas. Na sua ausência, uma montanha frondosa é o regaço da existência em pleno sentido.


O sono despertou do seu sonho. A frase batida, contudo, reproduzia-se no horizonte meditativo. Como se fosse um refrão de uma música escutada à exaustão. Aquela frase podia significar tantas e diferentes coisas. Podia, até, ser caução da insignificância da existência individual – afinal reduzida a uns irrisórios trocos, uns indiferenciados trocos a tilintar na algibeira. A atenção desviada para esta cor enegrecida do lugar-comum em assalto permanente. A desvalorização da vida; ou apenas que não fazemos da vida aquilo que queremos, ela tão autónoma, tão livre para escolher o leito por onde voga. Nós, apenas marionetas das circunstâncias sempre alheias. Nós, os trocos que ou pejam os bolsos ou se gastam com o frémito da luz traiçoeira.


As moedas, as miudezas que simbolizam cada vida, apenas a limalha que sobra dos grandiloquentes projectos que acabam no estirão das lamentações. Uma imagem pintada a cores vivas e, todavia, uma palidez convulsiva: hoje o bolso cheio de moedas e, porventura amanhã, despojado. A vida deserta de si. Um coro ao longe a entoar um lânguido choro, porta-voz do infortúnio. O tempo, esse, chega sempre adiantado às promessas abortadas. O maldito tempo que se esgota, na recusa em ser complacente com a esquadria efémera da vida.


Outro lugar-comum em forma de interrogação múltipla: de que servem as aflições pessoais, o rosto que se vira para acolher os ventos tempestuosos, os pés que teimam em abrasar o caminho sem retorno, ou os pés que caminham maquinalmente rumo ao primeiro precipício encontrado? Qual a serventia das nuvens sempre carregadas que adornam as avenidas do pensamento? Onde está a utilidade dos prazeres da vida, dos afectos, das pessoas resguardadas num canto da alma, se caíram na rotina suicida? Qual o sentido das emoções entoadas no vazio?


Sim: a vida é um bolso cheio de trocos. Tão frágeis – os trocos como, em sua metáfora, a existência. O esbanjamento dos exíguos cobres é a centelha do juízo que se reencontra: só então os olhos alcançam o que foi desperdiçado. Sobretudo quando o corpo já caiu no abismo e não há maneira de inverter a marcha. Os meros trocos, afinal valioso pecúlio, inestimável tesouro que só merece consagração quando está no limiar da delapidação.


Inspirado pelo sonho vestido pelo atordoador lugar-comum, uma lição. Que importa a turba ruidosa no parque aquático, ou o muito francês de subúrbios em vozearia a sitiar as meninges, ou as mulheres espalmando as abundâncias adiposas em reduzidos biquínis, ou os homens de meia-idade exibindo o pujante e arredondado ventre debruçado sobre o temerário calção de banho, ou a donzela que retira de uma perna, com uma pinça, pêlos encravados, ou uma adolescente que cata nas costas da amiga as excrescências da acne juvenil? Há alturas na vida em que a ventura chega por interposta pessoa. É isso, também, a paternidade.


O segredo está em aprender a ser feliz com a felicidade dos filhos.


14.8.08

Xenofobia de ricochete


Dias tumultuosos, estes de assaltos a bancos que terminam com o directo televisivo da liquidação dos assaltantes à bala, ou de desacatos inter-étnicos nos arrabaldes de Lisboa que fizeram de um bairro cenário de um filme hollywoodesco, ou de um assalto que terminou com a morte do filho (treze anos) de um dos assaltantes. Em certas pessoas, a proclamada silly season desata em violenta criminalidade. A outros, comentadores por excelência e todos encartados em sociologia de pacotilha, serem testemunhas da violenta silly season dá-lhes para compor hinos ao disparate.


O denominador comum a estas erupções de criminalidade violenta: arrufos étnicos, sempre com imigrantes ou minorias étnicas no papel de maus da fita. Os sequestradores de um banco eram brasileiros; nos arredores de Lisboa, o bairro que viveu o pânico de armas de fogo de calibre proibido foi palco para um conflito entre pretos e ciganos; o adolescente morto na perseguição policial era cigano. As exacerbadas facções com vigoroso cardápio para acusação e réplica. Há quem veja nisto a prova de que imigrantes e minorias que teimam em viver à margem têm um dom inato para o crime. Não lhes interessam as estatísticas que provam a mesma percentagem de criminosos nessas comunidades e entre os nativos de gema.


Do lado contrário, virgens ofendidas servem-se no prato da exclusão étnica para nutrirem o seu catecismo. O exemplo mais patético vem das acusações à polícia por ter usado força excessiva que levou à morte do jovem – sem questionarem o progenitor: "que raio estava o seu filho a fazer num assalto?" Não sei se o pai responderia "o tirocínio para a vida" e se das esquerdas folclóricas a habitual miopia trataria do silêncio sepulcral que se seguia. Nem de propósito: acabo de ler que o pai que agora faz o luto do filho é um foragido da cadeia desde 1999. Se é cigano ou deixa de ser, é irrelevante para o caso.


Não me apetece dar para esse peditório, onde a discussão anda tão apaixonada que por vezes roça a irracionalidade. Não consigo aplaudir a actuação da polícia que libertou, à força da bala, as pessoas sequestradas dentro do banco pelo duo de brasileiros. E não consigo varrer o lixo para baixo do tapete e acusar a polícia de uso exagerado de força, para logo de seguida assinar por baixo a tese de racismo contra a comunidade cigana. Nem me interessa saber o solo onde nasceram os que cometeram aqueles crimes. É obsceno argumentar que os estrangeiros, os assimilados que se recusam a integrar, ou os ciganos são criminosos em potência, como se os nativos envergassem, sem excepção, uma auréola sob as suas castas cabeças. Prefiro atirar a seguinte provocação aos que se digladiam com estas coisas: não é o brasileiro, ou o preto, ou o chinês, ou o indiano, ou o cigano o alvo maior da xenofobia indígena. É o filho do emigrante em França que se apropria do Agosto e enxameia a terra pátria dos progenitores com a sua estética lamentável e o francês de subúrbios.


Estes luso-franceses passam incólumes à vergasta dos conservadores de sacristia e salazarentos ressabiados, como passam imunes à suprema moralidade dos fradescos que arribam às esquerdas. Aos primeiros, a lente ofusca-se porque a gente que anda lá fora a remeter divisas para o luso enriquecimento é gente honrada, trabalhadora, um exemplo para o que escasseia na portugalidade deprimida. Ocultam o dedo acusador porque em matéria de estética os conservadores de sacristia e os salazarentos ressabiados rivalizam com os jovens luso-franceses que dão à costa. As esquerdas folclóricas têm que engolir um sapo. São muito prendados quando chega a hora de medir padrões estéticos. Adivinho-os horrorizados num qualquer recanto, citadino ou urbano, onde irrompe um magote de luso-franceses em exibição supina de mau gosto, com o já de si grotesco francês que se solta com estridência, os automóveis que prestam homenagem à tradição da geração anterior, conhecida que ficou por carregar os veículos de adereços inenarráveis. As esquerdas folclóricas engolem em seco e reprimem a censura estética porque se lembram, a tempo, do catecismo contra as exclusões. Como conciliam esse catecismo com os seus excelsos predicados estéticos e a anti-estética dos filhos dos imigrantes em França, é um enigma.


Nesta época de silly season, ao pensamento em apatia perdoam-se deslizes que o colocam à beira do abismo. Que me seja permitido o direito ao disparate próprio da época, para confessar uma irrefutável descompensação quando vejo a horda de filhos de emigrantes que tomam conta de Agosto e de todos os lugares. E para admitir que se trata de xenofobia, uma xenofobia com causa desculpabilizante (se for permitido ser juiz em causa própria) por ser motivada por estéticas considerações.


Admito: uma xenofobia que vem de ricochete. Aqueles luso-franceses são filhos de lusitana gente. Sempre usámos desta xenofobia contra os emigrantes que regressavam à terrinha em Agosto e, ao que parece, nunca demos conta do pecadilho. Pode-se dizer, visto daqui: era uma gente que se punha a jeito. Cá refugiados, riamo-nos da ridícula pesporrência do emigrante temporariamente de regresso às origens. E caímos na armadilha: sem percebermos, éramos xenófobos contra a nossa gente.


13.8.08

Vai ser bom para o negócio das bonecas insufláveis


Uma improvável relação causal: ambiente e bonecas insufláveis. O ambiente, na moda, coloca a imaginação fértil ao serviço das políticas públicas. É um arraial de imaginativas medidas, o sucedâneo de um campeonato onde as nações rivalizam pelo troféu do ambiente mais limpo. Nestas olimpíadas, os governos passeiam pela trela os ministros do ambiente. Que puxam galões à notável imaginação e surpreendem o mundo com as medidas mais inusitadas para salvar o mesmo mundo da insensibilidade ambiental, essa chaga capitalista que tem semeado negras tempestades num ambiente que se quer alvo.


Oportunidade para a lusitana terra figurar à cabeça das particulares olimpíadas da governação ambiental. Como não está em causa comparar estatísticas, temos essa hipótese; caso fosse uma competição feita de dados estatísticos, os louváveis governantes teriam escondido a lusa participação no certame (por decoro; e porque a humilhação não semeia votos). Ou talvez não: já tivemos prova, e abundante, que no Terreiro do Paço laboram génios da estatística, diria, da manipulação estatística. Com os seus dotes para pegarem em números e da mentira propagandearem verdade, podia acontecer que dos fundilhos da tabela acabássemos por ir parar quase ao topo. Há quem lhe chame batota. Outros, sem problemas em conviverem com meios menos límpidos de fazer as coisas, condescendem com o método. Pois o que conta são os resultados.


Desta vez foi anunciado, sem a pompa habitual, que está em estudo a cobrança de portagens aos carros que entrarem em Lisboa. Foi sem a pompa habitual, porque a coisa ainda não passou da fase dos estudos prévios. Fica explicada a hesitação que conteve os auto-panegíricos da praxe quando o escol que governa nos agracia com decisões e políticas – que, já foi sentenciado uma e outra vez, "ficam para a história" ou "fazem história", consoante os casos e a temperatura narcisista do timoneiro da nação. A assertividade só permitida a quem nunca tem dúvidas deu lugar às tergiversações. Por um dia até parecia que a gente do governo era humana, tão humana quanto a dúvida que assalta a espécie humana com metódica assiduidade. E tivemos direito ao pasmo colectivo: terá escapado à máquina de propaganda uma contradição entre o ministro do ambiente, que disse uma coisa sobre o assunto, e a secretária de Estado das obras públicas, que opinou o contrário.


Há que o dizer, só por desonestidade intelectual poderiam os meirinhos da governação mandar soar as trompetas da solenidade quando libertaram a ideia de aplicar portagens aos automobilistas à entrada de Lisboa. A desonestidade intelectual não pode nada contra a informação que as pessoas possuem: e as pessoas sabem que a medida existe noutras cidades (Londres, por exemplo). A propaganda que vai embelezando o governo na antecâmara da pré-campanha eleitoral teve que puxar lustro aos melhores neurónios para mostrar que a portugalidade, sobretudo quando é governada de cor-de-rosa, é de uma ínclita têmpera que motiva inveja nos outros.


No fim do brainstorming, enfim a pólvora: aos insensíveis diante dos imperativos ambientais que teimarem em vir sozinhos de carro para Lisboa, cobra-se uma portagem mais elevada. Como se fosse uma multa pela teimosia que desagua na reprovável insensibilidade ambiental. As gentes que se organizem, sejam menos egoístas e partilhem boleias quando vêm trabalhar para a grande urbe. Ambiente oblige. O ambiente renova mentalidades e até provérbios: por causa do ambiente, "mais vale acompanhado do que só". Um dia destes, em nome do ambiente até hábitos de higiene no roteiro da partilha: o banho deixará de ser individual?


Já estava de pé a aplaudir medida tão criativa e vanguardista quando o congénito mau feitio colocou uma interrogação a pairar sobre a cabeça: como vão controlar o número de passageiros dentro de cada automóvel à entrada de Lisboa? Vou partir de pressupostos tecnológicos: se tanto nos gabamos de ter inventado a via verde – até exportamos o sistema – está fora de questão regressar à idade das trevas e ordenar a todo o automobilista que pare à entrada da cidade. Dá para adivinhar os monstruosos congestionamentos de tráfego que o controlo em nome do ambiente, se fosse feito dessa maneira, iria causar. Resta o controlo da matrícula com o auxílio das câmaras de vigilância. A peneira do sistema. É tão fácil saber quantas pessoas viajam nos automóveis que se encaminham para Lisboa.


O impenitente velho do Restelo que habita em mim não consegue reprimir o porém por duas vezes. Primeiro, a vigilância por câmara remota é desconfortável, sobretudo para aqueles que não queriam que ninguém saiba quem transportam para Lisboa. A menos que a ditadura do ambiente obrigue a repensar até o significado de privacidade. Segundo, com a fértil criatividade das gentes, mais vibrante quando sentem a necessidade de improvisar perante imprevistos, aposto na venda exponencial de bonecas insufláveis. Só para enganar as câmaras de vigilância. E para que os condutores que cultivam a solidão na viagem para o trabalho possam escapar à portagem insultuosa.


12.8.08

Os soldados não são feitos de chumbo


Nem as pessoas comuns – que seja perdoada a distinção, pois os soldados, qualquer soldado, é tão carne e osso e sangue como uma pessoa qualquer. Só que os soldados formatados para entrarem em guerra sabem que o dia em que enfrentam uma batalha pode ser, com grande probabilidade, o seu derradeiro dia. São a carne para canhão das guerras ditadas por loucos que variam em ausência de escrúpulos. E mesmo eles não são feitos de chumbo, ou de plástico, ou de qualquer matéria inerte, como os especialistas em estratégia militar (militares de carreira, ou os que o são em versão frustrada) gostam de teatralizar. Se eles, treinados para morrer em combate (assegura a retórica castrense), são gente, o que dizer dos inocentes que tombam "vítimas colaterais" (que hedionda expressão!) de uma guerra que neles desabou?


Todos temos os nossos dias de desarmante ingenuidade? Uma visão pura e lírica. E de tão pura e lírica, onírica, concedo. Do que o mundo não é, porventura do que o mundo deveria ser e que, temos a certeza, jamais verá a cortina descerrar-se. Estou diante de mais um acto de estupidez colectiva, a impressão digital da espécie humana: a guerra do momento, que há-de sempre haver guerras prontas a ceifar vidas na vil glória dos exércitos que se entregam à mórbida valsa dos inimigos. A guerra entre a Geórgia e a Rússia. Outra vez as armas a trovejarem às portas da Europa que se pensava reservada a uma longa era de paz. Não fosse esquecer-me do pessimismo antropológico que esforços vãos procuram encerrar numa inacessível arrecadação do pensamento.


É nestas alturas que o mundo inteiro desata num ensandecimento colectivo. A começar pelos beligerantes. Desapossados de racionalidade, falando a linguagem da artilharia, cegos pela conquista de posições ao inimigo, celebrando cada soldado inimigo morto em demencial festim. As notícias que não se queriam ler chegam a uma velocidade vertiginosa. Uma contabilidade infame: a cada dia de bombardeamentos, mais funda a trincheira onde se enterram os mortos. Estes mortos que não contam para nada. Prova-o a frieza com que a guerra desabou nas suas vidas, desvalorizadas a uma bagatela. São medalhas, ensanguentadas medalhas, para o lado contrário; não são vidas humanas que deixaram de ver a luz do sol, o riso dos familiares, a beleza da paisagem. Apenas coisas a quem o lado errado apanhou na esquina da morte. As guerras, insisto na faceta naïve, são a condecoração mais refulgente da bestialidade humana. Os seus orquestradores caldeiam a humana condição com os atributos animalescos que renegam aquela condição. Leio: dois mil mortos em meia dúzia de dias de combates. Noventa por cento, civis apanhados no caminho dos morteiros. E sinto vergonha da humanidade.


A loucura geral estende-se até a quem não participa nas atrocidades da guerra. A diplomacia atarefa-se em medir as consequências da guerra para o balanço de poderes. A diplomacia devia estar interessada em levar os beligerantes à paz imediata. Em vez disso, olha para o respectivo umbigo nacional e procura saber o mal (ou o bem) que a guerra pode significar. Desafortunada humanidade. Com os soldados empenhados numa guerra mesmo quando não empunham uma arma na frente de combate.


A provar que a guerra é uma patologia contagiante, até gente com discernimento olha de esguelha para o evento. São os comentadores, neste caso especialistas em geoestratégia, assuntos militares, relações internacionais. Muito entretidos a tentar explicar o que não têm explicação possível – a não ser pelos manuais da demência, os manuais da especialidade que acolhem a guerra como acto natural do Homem. Entusiasmados, desenrolam o fio à meada: o contexto regional, a geografia particular, os interesses envolvidos – os directos e os encapotados – as tensões étnicas que fermentam desavenças mortíferas entre povos vizinhos. Tomam partido, caucionando a tempestade de balas e a assassina coreografia de bombardeamentos aéreos, um mero ingrediente da normalidade. Os milhares de quilómetros de distância amolecem a sensibilidade pelas vidas humanas, as já perdidas e as que estão em risco. O "teatro das operações" é que os excita, sucedâneos à distância dos generais que comandam a estratégia refastelados no bem-estar do quartel-general.


Alguém devia explicar o básico a estes excitados especialistas da "arte de guerra" (que cínica conjugação de palavras: "arte" e "guerra", como se a guerra alguma vez pudesse ser uma arte, qualquer arte que seja). Que na longínqua guerra andam a morrer ou em sofrimento pessoas tão carne e osso e sangue como eles, comentadores no papel de abutres de uma guerra alheia. Que a longínqua guerra não tem actores de chumbo – ou de plástico, ou de outra matéria inerte; são pessoas. Em repetição, só para perceberem como deve ser: as pessoas não são feitas de chumbo.


11.8.08

A intendência dos silêncios


Lugares sombrios, onde apenas o silêncio dura. Uma cortina de água onde mergulham os sons da ausência. As águas devolvem à superfície uma quietude expressiva. Depois, tudo se torna cristalino. Como se a paisagem clareasse à passagem de ventos serenos, a paisagem nos seus traços vigorosos. São as palavras maiores ecoam no seu silêncio. Viajam no silêncio do pensamento.


Quando os elementos dormem na sua acalmia, tudo se imortaliza em redor. As folhas das árvores não soltam um sussurro. Na sibilina fronteira entre o ser resgatado e a idílica coreografia da paisagem, um ténue fio, o silencioso rumorejar que se insinua. Nos sons ausentes, a peregrinação interior que se inicia. O corpo estremece tomado pela mágica poção do silêncio. Os olhos encerram-se no torpor convocado pelo silêncio. E, contudo, nessa escuridão é que desfilam as paisagens mais coloridas. Uma sucessão de lugares ora visitados, ora apenas idealizados. A viagem acompanha a depurativa digressão ao mais fundo do ser. Tem ao fundo a incomparável melodia do silêncio.


Os elementos, na sua voracidade, emprestam o cenário à deambulação que há-de libertar o corpo do seu torpor. Uma cortina de sons ausentes vem e volta, silêncio sepulcral onde as coisas têm a sua claridade devolvida. Mosaico de penumbras onde se insinuam as melodias do silêncio. Um vasto campo à frente dos olhos, a seara juvenil onde o silêncio repousa, deitando-se nas ramagens imberbes. Dançando com os cereais ainda à espera de erupção, dançando com a brisa que se compõe. Ao alto, um céu que se pintou num azul tão nítido. Os espasmos do vento não chegam para transtornar o silêncio imperial. O silêncio aclama os sons interpretados pelo vento. O silêncio recomposto pelo silvar da brisa a siar sob a seara. As hastes do trigo são o colo derradeiro onde se detém o vento.


De repente, o céu fez-se escuro. A compasso, o entardecer e as nuvens trazidas por vento mais furioso. E o silêncio que se tinge de outras cores, o silêncio que avista a melodia da tempestade que se anuncia. Silêncio, ainda. Em redor, na longínqua distância de tudo, não há vestígios de vida que subtraiam o silêncio. Só contam os elementos, os maestros do silêncio encantador onde se orquestra a aleatória combinação do vento descendo sobre a seara para depois se empinar pela copa das árvores, embotando a vista no crepúsculo que o tempo adianta.


Os pés, cansados, prosseguem. O silêncio parece a sua anestesia, o manancial das forças que empurram o corpo em demanda de mais paisagens desconhecidas, onde mais silêncio revolve as palavras mudas que se sucedem num delirante turbilhão. A memória não tem maneira de as registar, perdidas na vastidão dos pensamentos que encontram nutriente no silêncio. Palavras emudecidas pela cortina de silêncio que desceu naquela vastidão do nada. A romper o silêncio, descarrega-se um grito lancinante como trovão que empalidece o pensamento. Um espasmo doloroso que se esgota nas gastas paredes do abrigo alcantilado. O sossego, por fim. No caminho pedregoso, só o ruído do granito que estilhaça debaixo dos pés. O trilho estreito e agreste que escala o promontório bebe as gotas de suor que escorrem do corpo cansado. As pedras pontiagudas lavadas pelo suor, a melodia que se renova.


Ao fim de íngreme subida, o caminho torna-se amplo e deixa de ser caminho: já só um terraço de onde tudo se avista. No sopé, onde a claridade devora tudo em redor, o refúgio dos sons amplificou-se no seu significado. A nitidez que purifica e o ser redimido. Demanda proveitosa do silêncio capaz. O silêncio emparelhado com a necessária solidão. Peregrinação ao fundo do ser, de onde se resgata das maleitas interiores. Silêncio e solidão, os bálsamos para a emenda.


8.8.08

A cabalística dos números, ou a inauguração dos jogos olímpicos de Pequim no oitavo dia do oitavo mês de dois mil e oito, às oito horas e oito minutos


Jogos olímpicos inaugurados, para deleite do regime chinês – companhia pouco aconselhável para quem se preocupar com os direitos humanos. É lamentável que haja gente, dirigentes internacionais do desporto, que teima em manter o desporto à parte da política. É gente que ignora os rudimentos da ciência política: em tudo, até em gestos triviais, há política. Que dizer quando a China persiste em atropelar direitos humanos e é presenteada com a organização dos jogos olímpicos? Porventura, que os dirigentes do comité olímpico internacional (assim mesmo, grafado a minúsculas) é gente tão pouco recomendável como os facínoras dirigentes chineses.


Serei acusado de etnocentrismo se achar risível que a cerimónia de abertura dos jogos olímpicos tenha sido reservada para o oitavo dia do oitavo mês do oitavo ano do século, quando os ponteiros do relógio marcavam a oitava hora e o oitavo minuto do dia? Já ouvi e li explicações sobre o simbolismo dos números para a cultura chinesa. Os que me acusem de espírito tacanho – e que, portanto, sejam portadores de espírito aberto – terão na ponta da baioneta o argumento decisivo: não se questiona uma civilização milenar. A antiguidade é um posto, e ai de quem a questionar do alto do seu imberbe aprumo. É interessante: são os primeiros a subscrever o catecismo anti-etnocêntrico e, logo de seguida, fazem letra morta do sacrossanto relativismo a que fazem orações.


Como ainda não estamos na China e podemos arriscar a liberdade de expressão, ouso satirizar a cabalística dos números praticada pela cultura chinesa. Podem-me narrar exaustivos tratados sobre a congeminação dos números, de como eles têm um significado particular e de como essas significações se entrelaçam ao articular vários algarismos. Podem até revisitar os tempos e mostrar como alguns acontecimentos coincidiram com um acasalamento de algarismos e o simbolismo que deles se oferece. Dirão: contra factos não há argumentos. Eu contraponho: o que terá nascido primeiro, o significado dos números no predestinado entendimento de visionários, ou os acontecimentos que foram sendo moldados a números?


O oito significa, ao que percebi, riqueza. Aconteceu; podia significar infâmia, desonra, maleitas, sorte ao amor e por aí fora. Foi riqueza que calhou em sorte ao número oito. O afortunado – ou talvez nem tanto, decerto alvo de vivissecção pelos que combatem a globalização capitalista e tudo o que signifique a materialização da vida.


A minha cabeça anda às voltas quando esbarra em esoterismos. Por mais elaborados que sejam, servidos numa bandeja que aparenta racionalidade para convencer os descrentes, a efusiva crença dos seguidores de esoterismos é ingrediente bastante para me fazer olhar de soslaio para eles (para os esoterismos, entenda-se, não para quem os pratica). O meu problema de visão – diagnosticado pelos apaniguados da milenar cultura chinesa – impede de alcançar mais longe. Limitado, persigo a sangrada via pejada de espinhos, o meu obscurantismo intelectual. E convenço-me que a cabalística algébrica chinesa faz uma tangente a uma banal superstição.


Os jogos olímpicos tiveram que obedecer à cabalística dos números. Para que, como se vulgarizou dizer em luso solo, "não vá o diabo tecê-las". O diabo, é sabido, não é fautor de coisas boas. Por cá, longe da refinada cabalística dos algarismos, uma vez por outra descaímos para a modalidade. Quem arrisca a fazer coisas sérias em sextas-feiras que coincidam com o décimo terceiro dia do mês? O diabo deve ter um pacto com o incompreendido número treze. Na China, o número da fortuna é o oito. Os caprichos do calendário aliaram-se com a oferenda do comité olímpico internacional. Os chineses, os notavelmente democráticos membros do partido comunista, aproveitaram a oportunidade para semearem a perpetuação de um nefando regime. As olimpíadas inauguradas a oito do oito de dois mil e oito às oito e oito para isso servirão (à lupa da milenar cultura chinesa, que aqui é lança espetada no ferrete de um comunismo que se julgava imune a estes devaneios populares).


Nestas coisas é preciso ter fé. Na religião, em qualquer superstição, num esoterismo que se julgue de primeira água. Aos incréus, o direito a soltarem uma sonora gargalhada. O direito ao desdém. É tudo tão risível que este texto foi escrito no oitavo dia do oitavo mês do ano dois mil oito e publicado às oito horas e oito minutos GMT. Agora percebo a tremenda incoerência, que me fez…num oito.