10.7.08

Ó vã glória passada!


Gente de âncoras e bandeiras de cruzadas

Homens que erguestes padrões

Que destes nomes a cabos

Que primeiro vendestes escravos de novas terras.

Fernando Pessoa, “Save my soul”.

E se a história dos descobrimentos, com toda a glorificação de uma gesta, fosse banida dos manuais que ensinam as criancinhas? Ao menos elas não se sentiam defraudadas quando o deixassem de ser – criancinhas – e sobre elas caísse o véu das ilusões. Quando, por fim, o discernimento viesse ao seu encontro e percebessem que o que lhes contaram nos bancos da escola não condiz com o que somos hoje. Uma tremenda incongruência: entre a trivialidade de hoje, a mediocridade militante, e a sagração de ínclitas gerações que espalharam a grandeza da portugalidade por todo o lado onde houvesse mundo.

Não digo que se apaguem essas páginas da história. Da história que não muda. Não acho pedagógico, nem aconselhável para a formação da personalidade dos jovenzinhos, que se insista numa grandeza que por o ter sido num passado tão distante hoje é apenas uma fátua grandeza. Os preclaros de então, dir-se-ia, gesta que se esgotou nesse tempo. Depois foi sempre a descer, e cada vez mais vertiginosamente, tanto que parece já nem haver mais precipício que intimide. Os proclamados egrégios avós são um impasse para gerações que despontam na esperança néscia. É que nem sequer de avós se trata: para além de tetra-avós é que se encontra a dita egrégia geração.

Não sei se a desesperança de hoje é a estocada espontânea que leva ao mergulho nas profundezas do passado, onde se encontram os supostos tesouros que, há quem acredite, nos engrandecem hoje. É um espúrio exercício: por um lado, os feitos devem-se aos remotos antepassados. Se nos apropriamos deles é uma canibalização indevida, mais um archote da mediocridade de quem apenas encontra pretexto de grandiosidade colectiva nas tão distantes façanhas. Por outro lado, aviva-se a sensação de vazio actual perante o contraste entre as gerações de então e a vulgaridade que por hoje campeia.

Quem suporta na carne os custos da decepção são os jovenzinhos que caíram no logro da propaganda oficial que se insinua nos programas da História ensinada na escola. O inebriamento pelas conquistas, a adoração diante do pretenso desprendimento das tarefas de civilização dos bárbaros, sempre com um cheirinho de evangelização que abriu horizontes depois da conversão ao catolicismo – tudo fermenta no espírito das criancinhas desavisadas, a ilusão de uma grandiosidade que hoje não existe. Tamanha desilusão. E nunca a palavra desilusão teve significado tão fidedigno para retratar um sentimento: as ilusões que se desfazem num doloroso nada.

Enquanto estivermos presos ao estigma do passado de tantas glórias é um presente que se esbanja, um futuro que fica sem norte. Um futuro que depressa tem o travo das sucessivas oportunidades desperdiçadas. Alguns dirão que abuso do pessimismo nesta leitura. Pois acho que pessimistas são os que se agarram à tábua das glórias passadas para vincar a nobreza da portugalidade. São pessimistas sem darem conta que o são. Terão que concordar que é enorme a diferença entre as poetizadas ínclitas gerações de outrora e as gerações que nos conduzem hoje – enfim, todos nós, de uma forma ou de outra. E enquanto houver a teimosia de fazer a sagração dessa portugalidade embrulhada num saudosismo patológico, sobra o inevitável pessimismo de hoje.

É um problema de expectativas. Quem tanto terá feito em séculos passados, acusado por ter elevado a fasquia da exigência de tal modo que seria difícil manter o ritmo. Em vez de os adorarmos, devíamos culpá-los por tanta ambição. O problema é que às criancinhas que tomam contacto com as glórias de então, as expectativas de grandiosidade se esboroam em nada quando medem o pulso ao que somos agora. Defraudadas expectativas. E a ingrata sensação de que todo esse esplendor entoado em quase bíblica poética por Camões ou Pessoa é uma vã sensação. O que acentua o vazio por dentro ao perceberem, caído o véu das ilusões, o que desfila diante dos seus olhos.

As criancinhas não deviam ser treinadas para o logro que as decepciona. É uma maldade inadmissível, uma traumatizante maldade. A dor de um império desfeito. A esquizofrenia doentia: como podemos caber no que somos aquilo que fomos? Aquilo que é venerado nos bancos da escola.

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