14.7.08

Casamento – contrato ou instituição, who cares?


Vai por aí intensa discussão: o casamento é um contrato ou muito mais do que isso, uma instituição, intocável, abrigada pela espessa teia dos usos e costumes? Oportunidade para, de lados diferentes da barricada, saltarem os habituais sacerdotes de opostas religiosidades: a conservadora, presa às saias do bafiento catolicismo; e a progressista, a das causas fracturantes, que cultiva uma alternativa construção social onde se desataca o vanguardismo que desfaz em nada usos e costumes consagrados.

Às vezes é comovente assistir a este combate sem rédeas. Já estou habituado: um dos sectores diz mata, o outro diz esfola. Cada um muito senhor das suas verdades, exalando uma intolerância para as posições contrárias (o que é pouco compatível com o proclamado relativismo dos progressistas, mas cada um tem direito às suas incoerências particulares…). Quem assiste de fora, como observador imparcial encantado com a guerra sem quartel, aprecia a irracionalidade de argumentos vomitados pela emoção à flor da pele. Por irracionais serem, perdem a categoria de argumentos. São apenas exalações de um emudecimento da razão, só muita emoção à flor da pele e uma irritação sublime pelas posições afirmadas pelo lado contrário. Grande parte do tempo é perdida em afirmações sem tino que têm o condão de provocar o lado antagónico. Não que a provocação de ideias não seja saudável – é que tantas vezes é dessa provocação que nascem debates intensos e ricos. Só que estas provocações são gratuitas inoculações de irritação no outro lado da barricada. Não são expressões genuínas, pensadas, o fruto de um raciocínio alicerçado.

Este debate acerca do que é o casamento sintetiza o arremessar de armas provocatórias dos dois lados. Os conservadores insistindo que o casamento é uma instituição, só para fecharem as portas às reivindicações dos progressistas. Estes, adeptos de fracturantes causas, querem permitir aos homossexuais o casamento em igualdade de condições com os heterossexuais. Só não percebo se é causa espontânea ou se se trata apenas de provocação dos empedernidos conservadores, para quem a proposta soa a heresia e tem um sentido contra-natura. Depois, uma espiral de pretensos argumentos de ambos os lados, mergulhando nas águas do radicalismo. Os conservadores puxando lustro a um conservadorismo demodé, talvez só para atiçar a fúria dos progressistas. Estes, em reacção provocatória, levando mais longe as propostas que esboroam usos e costumes.

Ao observador exterior, imparcial perante a espúria guerrilha, não interessa a discussão sobre a natureza do casamento. É um não assunto. O problema está em transportar para a praça pública um assunto que apenas diz respeito (correcção: devia dizer respeito) ao livre arbítrio de cada pessoa. Quando duas pessoas decidem juntar os trapinhos, ninguém mais tem legitimidade para interferir nessa decisão. Se vivem em união de facto ou se decidem formalizar a união, decisão que apenas lhes pertence. Sem correr o risco de me colocar ao lado de um dos sectores da guerrilha de costumes, que sentido faz discriminar a união de facto em relação ao casamento? Qual a diferença entre duas pessoas que vivem “abençoadas” por um casamento e duas pessoas que vivem em união de facto (para além da artificial diferença de estatuto consagrada por lei)? O sentimento que une as pessoas é diferente só por causa da opção que tomam?

O que custa entender nesta discussão é a consequência que ela traz: é como se os afectos entre duas pessoas fossem colectivizados. Isso sim, é um contra-senso: lá diz o provérbio, que aqui vou adaptar, entre um casal não se meta a colher. Ao trazer a discussão da natureza do casamento para a praça pública estamos a permitir que todos envolvidos na discussão metam a colher na união (de facto ou contratualizada) de cada um de nós. É neste sentido que há colectivização dos afectos. Por isso é uma estéril discussão, um não assunto.

O mais esquisito é que na urgência em tornar o casamento um contrato (dessacralizando-o) ou manter que ele é uma instituição (impedindo uma certa “banalização” do casamento), os dois lados da barricada não percebem o tiro no pé. Fico mais perplexo com a boutade dos progressistas: querem, em nome da sagrada igualdade, colocar ao mesmo nível uniões heterossexuais e uniões homossexuais. Não é o facto de considerar que os homossexuais têm direito a este direito que me impede de manifestar estranheza pela insistência na causa: o problema não está num reconhecimento de direitos, porventura com o simbólico sinal da igualdade tão reclamada. Mais importante será o que duas pessoas sentem uma pela outra. O que interessa o reconhecimento que a sociedade dá ao seu afecto? Pois não é isso que se procura através do casamento – como se fosse a bênção dos outros ao afecto de quem se ajoelha diante do contrato ou instituição, o que interessa?

Perturba-me: como em algo que é íntimo a duas pessoas há quem procure o reconhecimento dos outros. Causa-me estranheza como algo que só diz respeito a duas pessoas leva alguns a tanto lutarem pela caução exterior a elas. Talvez sinal de ausente amadurecimento da individualidade de cada um, projectando na exterioridade de si a aprovação do seu livre arbítrio.


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