18.6.08

Necrofagia


No fim da interminável fila de automóveis, um acidente. As pessoas parando os seus automóveis em qualquer lugar, saindo de seus automóveis para apreciarem o macabro espectáculo. Detêm-se a fitar a chapa retorcida, onde se mistura o sangue abundante dos ocupantes. Por ali ficam, deliciadas com aquele odor pestilento a morte. Inebriadas com o lúgubre cenário, como se fossem cangalheiros voluntários, espreitando entre a amálgama de destroços só para perceber os detalhes medonhos do tremendo acidente. São necrófagos das vítimas do acidente.

Ainda estou para perceber se assumem a necrófaga condição como acto voluntário, ou se a tanta ignorância os leva involuntariamente ao duvidoso circo montado num pedaço de asfalto. Seja como for, comprazem-se com as tonitruantes imagens dos automóveis que se enfaixaram de frente um no outro, ali jazendo cada um para seu lado, só ferros retorcidos de onde foram resgatados já cadáveres. Parece que se extasiam com o perfume a morte, enfeitiçados pelo mar de sangue que escorreu para o asfalto, tanta a excitação que escorre daqueles rostos populares que se passeiam entre os destroços. Saberão que são abutres dos infaustos que ali pereceram?

Ou quando passam na televisão imagens de catástrofes – um atropelamento, os corpos trucidados pelo comboio num imprudente atravessamento da passagem de nível, uma desavença familiar que terminou a tiro de caçadeira, um corajoso suicídio, ou a tragédia em massa quando um autocarro se despista e as vítimas se avolumam na contabilidade do acidente: há sempre uma turba em redor farejando o cheiro a desgraça, o dever indeclinável de muitos pares de olhos serem testemunhas do infortúnio alheio, selando-o, compondo o cenário na qualidade de anónimos figurantes investidos na pele de abutres. Por lá andam, tantas vezes a incomodar a função dos socorristas. Mirones nada compungidos com a desdita das vítimas; apenas passeando a sua tremenda ignorância.

É uma pulsão irreprimível. Uma incontrolável atracção pelo precipício da desgraça, como se no fundo andassem por ali a farejar a desgraça que um dia lhes há-de calhar (diria, sem ousar, em sorte). Só desmobilizam quando os corpos foram retirados de ambulância, já a caminho da morgue onde uma autópsia os espera. Só vão embora quando os vestígios do acidente são levados no reboque, já nada restando dos destroços que sinalizaram o desastre. No mais profundo da sua ignorância, não conseguem perceber como saciar a mórbida curiosidade é um indigno acto. Até parece que tem algum valimento para as vítimas o coro de abutres que por ali estaciona; quando se trata apenas de encherem a alma com o trágico cenário, a amálgama de ferros, o asfalto ensanguentado, os destroços onde se misturam os haveres das vítimas como prova do bocado de vida que ali findou.

Esta necrofagia militante é um pedaço da “cultura” popular. Depois chegam a casa, ou no dia seguinte junto dos colegas de trabalho, e são heróis acidentais no relato pormenorizado do que viram. Com excessos, para apimentar o espectáculo que contam aos demais. Eles também atraídos pela macabra descrição, invejosos do herói acidental que canibalizou os destroços do acidente, figurante de um impudico cortejo. Uma mesquinhez inqualificável. O sinal maior da pequenez dos mirones de acidentes alheios. Será esta curiosidade mórbida manifestação de que gostariam de ter uma lauta audiência se um dia chegar a sua vez de serem vítimas da estrada?

O exército que se acotovela nas imediações do corpo inerte já coberto por um lençol, sinal da sua cadavérica forma, apenas uma ralé ignara e sem sentimento de compaixão. Coitados, tão mergulhados na estreiteza de vistas, nem chegam a perceber que a passeata pelos destroços do acidente, espreitando para capturar todos os macabros detalhes do acidente, é a prova de desrespeito pelas vítimas. Já não bastava terem sido vítimas, estarem a sofrer as dores lancinantes das fracturas, ou terem até partido rumo à morte; ainda têm uma turba insaciável do perfume da desgraça a caucionar a sua desdita. Nem no infortúnio têm direito ao seu recato, acossados pela turba que por ali ciranda, morbidamente curiosa.

À sua volta, as vítimas sentem o bulício dos abutres humanos que, à sua maneira, debicam no cenário da tragédia os fragmentos que saciam a sua doentia curiosidade. É a sua primavera de destroços, perene primavera de destroços.

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