9.6.08

Jurisprudência anotada


Dos tempos em que decidira ensaiar o tirocínio para a advocacia (desses não saudosos tempos): era fundamental espreitar a jurisprudência de casos semelhantes aos que iam a tribunal dentro de dias. O que é a jurisprudência? O conjunto das decisões dos tribunais em casos semelhantes. O seu estudo serve para perceber como os tribunais têm decidido em casos parecidos. E para ter uma noção das probabilidades de êxito, sempre descontando os detalhes que distinguem os casos por mais parecidos que eles sejam. Também havia volumes de jurisprudência anotada, recebendo o contributo de ilustres juristas. Aí se fazia comentário das sentenças – a contragosto de suas excelências os magistrados, convencidos da sua aura de infalibilidade, no lastro do muito respeitinho devido que se convencionou a um “órgão de soberania”, sinalizado através do respeitoso erguer de rabo da cadeira quando suas excelências entram e saem da sala de audiências.

Sem saudades desses tempos de prometido jurista, hoje tomo o papel de jurista (não) arrependido para comentar uma sentença do Supremo Tribunal de Justiça. Use-se o termo técnico correcto: “acórdão”, não sentença – que a comunidade de juristas é muito zelosa da terminologia técnica. Cheguei a essa sentença através do blogue “cinco dias”. Foi um caso de violação de duas jugoslavas que se aventuraram a pedir boleia na berma de uma estrada algarvia. A coisa foi parar a tribunal e foi subindo, de recurso em recurso, até à decisão final do Supremo Tribunal de Justiça. Que absolveu os garbosos algarvios que tomaram pela força as jovens jugoslavas. Com esta justificação:

(…) se é certo que se trata de crimes repugnantes que não têm qualquer justificação, a verdade é que, no caso concreto, as duas ofendidas muito contribuíram para a sua realização. Na verdade, não podemos esquecer que as duas ofendidas, raparigas novas, mas mulheres feitas, não hesitaram em vir para a estrada pedir boleia a quem passava, em plena coutada do chamado “macho ibérico”. É impossível que não tenham previsto o risco que corriam; pois aqui, tal como no seu país natal, a atracção pelo sexo oposto é um dado indesmentível e, por vezes, não é fácil dominá-la. Assim, ao meterem-se as duas num automóvel justamente com dois rapazes, fizeram-no, a nosso ver, conscientes do perigo que corriam, até mesmo por estarem numa zona de turismo de fama internacional, onde abundam as turistas estrangeiras habitualmente com comportamento sexual muito mais liberal e descontraído do que a maioria das nativas.

A minha reacção imediata foi decompor a palavra “jurisprudência”. Em duas metades: juris mais prudência. Reli o excerto do acórdão e retive a segunda metade da palavra “jurisprudência”. Há alguma prudência nesta “douta” decisão do Supremo Tribunal de Justiça? Li outra vez os fundamentos da decisão: já se percebe onde a decisão se casa com prudência: é que, no fundo, os juízes-conselheiros que assinaram o acórdão subscrevem a marialva teoria do “elas estavam mesmo a pedi-las”. Quem as mandou vir para a berma da estrada de polegar em riste pedir boleia aos automobilistas que passavam? Estava-se mesmo a ver: o que elas queriam não era só uma boleia. Podiam elas ignorar que estavam “em plena coutada do chamado macho ibérico”? Até se pode ir mais longe na efabulação: quem, no seu juízo, não percebe de antemão que as jugoslavas viajaram até ao Algarve por saberem dos especiais dotes copuladores dos “machos ibéricos”?

Há palavras que são o retrato das mentes retorcidas de quem a lavra. Os juízes, homenzarrões feitos e, aposta-se, com um invejável cadastro de conquistas femininas (ou como, senão através da experiência feita, podem confirmar que as "turistas estrangeiras" têm um "comportamento sexual muito mais liberal e descontraído do que a maioria das nativas"?), não duvidaram em afirmar que nestas terra quentes do sul da Europa as hormonas ficam tão excitadas que, por vezes, a pulsão febril pelo sexo feminino não é “fácil de dominar”. Uma vez mais a prudência a aconselhar recato às turistas que vieram ao escaldante Algarve e provocaram os rapazes que corresponderam aos polegares estendidos na berma da estrada. Sem esforço se percebe a simbologia daqueles polegares estendidos: a via verde para o sexo consentido num desvio da estrada.

Há algo que não bate certo. Se o caso chegou ao Supremo Tribunal de Justiça, é porque as jugoslavas apresentaram queixa. Portanto, não terá sido sexo consentido. Foi violação. É espantoso como os juízes se substituem ao livre arbítrio das vítimas e inocentam os violadores. Os magistrados sem inteligência suficiente para perceberem que pedir boleia não é uma passadeira estendida para o envolvimento carnal, sobretudo se o caso aparece à frente dos seus olhos?

Já nem sei o que será mais inquietante: acreditar que suas excelências mandariam os violadores para a cadeia caso as vítimas fossem suas filhas, ou desconfiar que, com aquela infausta argumentação do acórdão, os juízes encaixam no perfil do violador potencial.

1 comentário:

luigi disse...

Boa tarde,penso que num caso desse os juízes foram um tanto insensíveis e tiveram uma péssima decisão.Vale perguntar:E se fossem filhas desses magistrados,como eles interpretariam o caso?
Grande abraço.
Luigi.