3.6.08

Euforia enjoativa


A nação inteira com os heróis da bola ao colo. Os jornalistas empenhados em relatar todos os pormenores, quase num diário intimista dos artistas da bola. O povo histriónico que glorifica deuses com pés de barro. Um povo carente de exaltação patriótica, tão imerso numa acinzentada existência.

Nem sei: se vomitar tamanha histeria colectiva, com o adequado beneplácito até do presidente da república (que sentenciou: o povo português – numa costumeira generalização em que os políticos são pródigos – está com os seus heróis), dez milhões de gargantas gritando o nome da pátria bem alto, dez milhões de corações palpitando acelerados, o tónico que os guerreiros da bola precisam; ou se impera complacência pela anestesia de que a populaça precisa para esquecer as misérias que desfilam todos os dias, para meter a cabeça no buraco e ser como o avestruz, que é debaixo da terra que passa o mirífico filme dos feitos do futebol que orgulham a pátria inteira.

E depois há o azar do local do certame. Dizem os entendidos que tivemos sorte: é a Suíça terra de diáspora por excelência. Os emigrantes andarão com os bravos dos relvados ao colo. Prognostica-se uma vaga de fundo imparável, como se os heróis da bola nem sequer tivessem saído da terra pátria. A Suíça é por estes dias o prolongamento da terra-mãe, holofote cintilante da portugalidade espalhada pelos quatro cantos do mundo. E os emigrantes, tão saudosos da pátria deixada para trás pelas vicissitudes da miséria já abandonada, porta-estandartes da histeria colectiva. Com a boçalidade recorrente de cada vez que um jornalista coloca o microfone diante da boca opinativa de um excitado patrício emigrado trajando as cores da “selecção de todos nós”, com os atropelos à gramática como melopeia da inanidade opinativa.

O que vale dizer que os feitos desportivos são um equívoco que apenas adormecem as pessoas, ou as distrai para as perplexidades que não se esgotam ao tomar o pulso aos indígenas negócios? Estes campeonatos que colocam equipas nacionais em compita são o pretexto perfeito para governantes incompetentes reverterem possíveis feitos alheios a seu favor. O oportunismo militante ao dobrar da esquina: se os bravos dos relvados regressarem com o humilhante travo da derrota, um coro de vaias e insultos à sua espera e os representantes da nação numa diligente ausência. Se o regresso for saldado pelo sucesso, entre os vivas urrados pela horda homenageante estarão suas excelências, coladas ao sucesso dos outros como se neles houvesse alguma razão do feito alcançado nos relvados.

Tudo o que ressoe a unanimismo tem um travo doentio, um travo que me afasta dos unanimismos. Não consigo reprimir o espírito de contradição que se revolve nas entranhas. Alimenta uma vontade indomável de romper com o unânime e exigível apoio aos rapazes de vermelho vestidos que andarão nos relvados como embaixadores do pulsar nacional. Os gritos e choros e angústias da portugalidade, da necessária portugalidade, algo que não me apetece provar, nem menos disso ser intérprete. E ainda que corra o risco de ser acusado de traição à pátria, o feitio contraditório arremete pelo indomável desejo do infortúnio a bater à porta dos heróis nacionais em helvéticas terras.

Eis a demonstração de como somos o contrário da idiossincrasia oficial, a que ensina que este é povo de brandos costumes. A algazarra que acompanha os heróis dos relvados é a negação dos brandos costumes. Ainda nem a competição começou e já está um país inteiro, mais a sua diáspora, em transe, emparelhado entre os achaques dos craques e o convencimento da vitória final. A anestesia colectiva, que leva tanta gente a tristes figuras que porventura os próprios não sonhariam ser capazes, sinal da euforia instalada. Uma euforia que se confunde com uma histeria nada diferente dos gritinhos e chiliques de adolescentes raparigas em concertos onde estrelas do rock devotados à androginia debitam inanidades musicais.

Perante este lamentável espectáculo, manda a sanidade mental que faça o mesmo que prometo em cada campanha eleitoral: banir noticiários dos ecrãs da televisão. Para não me agoniar na confrontação com o espectáculo eufórico, o encantamento imberbe dos anónimos populares que só querem ter uma visão – no sentido metafísico da palavra – do herói preferido, ou a prosápia dos entendidos ou não tanto que asseguram vitórias em todos os jogos. Tudo isto enjoa, tudo isto é terceiro-mundismo em potência, tudo isto é uma interminável exibição da mesquinha forma de ser da gentalha. Uma nova religiosidade, emproando a bandeira (tantas vezes colocada às avessas à janela nas casas da populaça). Ah, como é belo este orgulho pátrio! Ou belo, ou apenas um bocejo a culminar o enjoo sem fim.

1 comentário:

Luís Pontes disse...

Sem falar no cheirinho nacionalista bacoco, sempre a rondar no meio desta cultivada histeria.

Bom texto!

LPontes