23.4.08

O que têm em comum Danica Patrick e Carme Chacón (e, já agora, Manuela Ferreira Leite…)?

Danica Patrick venceu uma prova da IRL - o equivalente à Fórmula 1 nos Estados Unidos. Foi a primeira dama a conseguir o feito. Na Europa não temos nenhuma senhora a ombrear com os loucos cavaleiros do asfalto. Nisto, os Estados Unidos estão na vanguarda e devem merecer das ásperas feministas os maiores encómios, o exemplo para o outro lado do Atlântico. A prova que não são as menores capacidades físicas que impedem o sexo feminino de chegar aos triunfos numa competição que se julga feita à medida dos homens.

Serve também para destruir o mito de que as mulheres são aselhas ao volante. Faz parte da mitologia urbana contemporânea: vamos nas ruas e vemos, lá à frente, um automóvel a fazer asneira da grossa. E intuímos: deve ser uma senhora. Segundos mais tarde, quando passamos ao lado do aselha que entretanto passa o vexame da reprovação mediada por um coro de buzinadelas, a confirmação: “só podia ser uma mulher…”. Danica Patrick, uma franzina menina, é o estandarte do sexo feminino capaz de rivalizar com os coriáceos pilotos na arte de domar infernais máquinas com mais de oitocentos cavalos. Não é para o comum dos mortais. Só para os que têm um dom especial. Ela é a prova cabal que também há mulheres investidas neste dom. Por confirmar ficam as teorias que asseveram que só os homens sabem da poda. E as teorias que se socorrem da fisiologia para demonstrar que as mulheres têm apetência para a desconcentração quando são visitadas pela menstruação mensal. Se isso fosse verdade, Danica Patrick não poderia correr algumas vezes.

Carme Chacón é a nova ministra de defesa espanhola. Primeira exaltação dos enamorados pela esquerda modernaça cujo papado é pertença de Zapatero, e das feministas sem remissão: um demorado aplauso pela coragem de nomear uma mulher para tutelar a tropa. Os generais passam a dever respeito a uma mulher. Sinal dos tempos. Seria imaginável que a vetusta instituição castrense fosse obrigada a ficar em sentido perante uma mulher? E ver as tropas hirtas e solenes em parada, prestando vassalagem a uma mulher que, com o ar grave da ocasião, passa revista às tropas? Para adensar a ousada decisão, a senhora ministra está grávida de sete meses. Combinem-se os dois aspectos - uma ministra da tropa e as fotografias da ministra pançuda passando revista às tropas - e compreende-se a exaltação dos sectores que se deixam levar pela aragem modernaça que a coisa transpira.

Que adianta protestar contra a política que tudo empenha nos sinais exteriores que são o refúgio da inanidade? Os aplausos demoram-se, sem que a audiência extasiada dê um passo atrás e pergunte se a pessoa tem perfil para ser ministra da defesa. Pelo que me informei, não terá. Também, nos dias que correm, os ministros disto ou daquilo nem têm que perceber da poda. Basta rodearem-se de competentes assessores que lhes fazem a política. O ministro limita-se a dar a cara, a ser o porta-voz qualificado pelo dom da retórica que anestesia as massas. É enternecedor ver como uma decisão ousada, potencialmente chocante (para os costumes), recebe tantos encómios e é logo sinalizada como prova do arejamento dos tempos. Eu diria que esta é a prova acabada de que hoje governar é só uma encenação. E, pela encenação, a demissão da democracia servida na bandeja da ilusão em que o eleitorado é convidado a embarcar.

Terceiro acto: a democracia indígena terá por fim o seu acto de maioridade (na perspectiva da igualdade de género) se Manuela Ferreira Leite conseguir ganhar a corrida para a liderança do maior partido da oposição. Depois de amanhã a democracia celebra o trigésimo quarto aniversário. Chega à maioridade com dezasseis anos de atraso - e isto no pressuposto dos militantes daquele partido se convencerem dos méritos da candidata. Os ventos da vanguarda da igualdade de sexos sopram na direcção do Portugal dos conservadores costumes, e logo num partido tão abraçado ao conservadorismo. Socialistas com inveja? Sócrates que se acautele.

E anda meio mundo excitado com a emergência de tantas mulheres (faltaria falar da senadora Clinton, mas não me apetece). Vangloria-se o feito de Danica Patrick, esquecendo que nos distantes anos oitenta Michelle Mouton venceu o campeonato do mundo de ralis (certo: tinha melhor carro que a concorrência). E que na mesma altura houve uma mulher que conseguiu ser primeira-ministra no Reino Unido (certo: uma “mulher de calças” que provoca incómodo na causa feminista por ter sido responsável pelo regresso ao conservadorismo que não é do agrado das vanguardas feministas). Nada do que se proclama como sinal do arejamento dos tempos é inédito.

Porventura por uma incapacidade de compreensão que me corrói, não percebo este discurso que teima em manter acesa uma guerra dos sexos. Como se os sexos resumissem características exclusivas, como se todas as mulheres fossem iguais e todos os homens fossem iguais. Este hermetismo incomoda-me. Posso, por exemplo, confessar que tenho o que se convencionou chamar “sexto sentido feminino” sem ter que suportar comentários jocosos (dos marialvas) ou a incredulidade militante (das militantes feministas)?

Tempos modernos. Vingam as mulheres. Vinguem as mulheres. Assim como assim, os cépticos eternamente insatisfeitos com o andar do mundo não terão hesitação em apontar o dedo ao sexo masculino que tem tido os cordelinhos do mundo desde tempos imemoriais. Como dizia o escritor, gosto tanto de mulheres que se reencarnasse mulher, seria lésbica. Ou - e só então - feminista.

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