17.4.08

Não somos todos actores?


Sarkozy de visita oficial a Londres. Mas o que estava na ordem do dia era a companhia de Carla Bruni primeira-dama. Ofuscou o consorte, na pose de primeira-dama – já não no papel de artista do mundo da música emprestada do mundo da moda. Já não alguém que pertence a um palco cuja frivolidade não se compadece com a gravidade, a elevada seriedade da política. Assim como assim, foi trocar palco por palco. O palco dos espectáculos pelo paço do protocolo de Estado. Num como noutro, um imenso oceano em que tudo se faz de conta.

A imprensa, até a imprensa séria, a que se dedica a noticiar a política e as relações internacionais, deixou-se cegar pelo protagonismo da primeira-dama francesa. Ou a imprensa contaminada pelo vírus que habita no género cor-de-rosa da imprensa? Dizem os entendidos que Sarkozy não dá ponto sem nó. Neste idílio há uma pergunta sem resposta: aquilo foi uma paixão assolapada, que rematou em boda célere, ou foi uma manobra bem congeminada para distrair as atenções de políticas impopulares que Sarkozy quer aplicar, pois a populaça e a comunicação social estariam mais interessados nos detalhes do romance? A interrogação traduz-se na seguinte dúvida (aplicando o respectivamente da praxe): espontaneidade ou manipulação?

Sarkozy representa um papel? Como Bruni passou a representar um papel diferente daquele a que estava habituada? Como actores, com papéis bem delimitados, sabem o que lhes cumpre fazer. O roteiro é-lhes oferecido pelos fazedores de imagem, tudo bem encenado, tudo muito bem ensaiado, sem haver lugar a deslizes para além das marcações que delimitam os palcos que pisam. A mim parece-me que há em tudo isto a despersonalização da política: os actores aparecem nesse papel – actores, em sentido literal. Actores como simulacros oportunos, treinados para serem imagens do que se entende que o público gosta de neles ver. Uma miríade de espelhos onde se reproduzem as imagens que distorcem a essência de que são feitos a cada filtro que se ensaia num espelho mais que desfila diante da audiência.

A entrega à teatralização despe os actores da sua genuinidade. Dir-se-á que a necessidade de espectáculo, de mão dada com a fobia da comunicação social pela passerelle das aparências, fornece a formatação da imagem dos políticos contemporâneos. Só que nalguns casos a arte peca por excesso. Nalguns casos, tudo se resume à encenação cuidadamente estudada, à pose dos actores que se entregam a um papel – ou aos sucessivos papéis que vão desempenhando, consoante as exigências das circunstâncias. No restolho da visita oficial do casal presidencial francês a Londres, era só passar a vista pela imprensa séria (por decoro higiénico, a vista não se demora na imprensa cor-de-rosa): Carla Bruni tomou o protagonismo que a seriedade do momento aconselharia que repousasse no consorte. Era o vestuário de Bruni, a rainha que simpatizou com Bruni, o que estaria dentro da carteira de Bruni entreaberta fotografada numa cerimónia oficial, o retrato que captava um pormenor tão importante como a pose senhoril dos pés da primeira-dama. A tradução de tudo isto: de toda a fruta espremida, só umas pingas de sumo. Sobra uma polpa vistosa que não alimenta estômago algum.

Sarkozy desempenha um papel insólito: é o presidente de uma França anacronicamente republicana, da França teimosamente convencida do seu grandeur. Insólito, ainda, porque vem da direita que em França sinaliza um conservadorismo de costumes, o que não parece condizer com os holofotes todos vertidos sobre a mediática primeira-dama, na diluição do protagonismo do presidente da república. Como Bruni desempenha um papel. Suspeito que faz as vezes da actriz que empresta um inusitado grandeur ao inquilino do palácio presidencial: o grandeur que interessa ao mundano, o fogo-de-artifício permanente que embevece uma imprensa anestesiada, um público anestesiado. Talvez por isso mesmo: enquanto caem no engodo, passam ao lado das medidas tomadas por Sarkozy. E depois, quando chegar o momento de escrutinar nas urnas o mandato de Sarkozy, vão avaliar o quê? O ror de páginas que o idílio consumiu? A pose enigmática da primeira-dama, o vestuário e os costureiros que a vestem, o suposto “toque de classe” que Bruni empresta ao consorte?

Pausa para interiorizar: e não somos todos, de alguma forma, chamados a desempenhar um papel, vários papéis? Contrariando a nossa essência, despindo-nos de genuinidade? Por aí passam os elefantes que temos que engolir, as tantas vezes que somos obrigados a fazer de conta. É quando a vida real se confunde com um perene teatro, um teatro que nunca sai de cena. De tal forma que é o teatro que acaba por perder o rasto da sua fantasia cénica.

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