22.4.08

Caridade socializada?


Chego, através do blogue Ladrões de bicicletas, ao manual da recusa da filantropia dos ricos. É que está na moda a caridade dos ricaços, que decidem constituir fundações milionárias para onde vertem uma percentagem - decerto ínfima - das suas imensas fortunas. Do blogue Ladrões de bicicletas chegam cinco razões para que a esquerda seja contra esta caridade. Destaco as que me parecem mais incompreensíveis no plano da argumentação.

Em primeiro lugar, argumenta-se que a filantropia “corrói a democracia. Por que devem ser os mais ricos a definir as prioridades sociais? Devem ser os governos eleitos, impondo sistemas fiscais realmente progressivos, a decidir”. Para quem milita na esquerda radical, decidir sobre o património dos outros pertence ao registo da normalidade. A fortuna que uma pessoa acumula ficaria exposta às decisões dos políticos eleitos. Em vez da iniciativa privada - que tanto lesa as sensibilidades da esquerda radical - a caridade seria um exclusivo das políticas sociais postas em marcha pelo Estado. O instrumento? Impostos progressivos, muito progressivos, para que as grandes fortunas fossem compelidas a pagar impostos muito elevados. Dispensava-se a generosidade dos capitalistas cercados de abastança. Os impostos que eles teriam que pagar substituíam a sua generosidade.

Primeiro: a aversão à iniciativa privada explica muito desta posição. Não há vacinas que consigam impedir a reacção alérgica. Segundo: a desconfiança metódica do lucro - esse mal tão hediondo. Há uma alergia, diria religiosamente consistente, contra o lucro. Pelo menos contra os lucros que alimentam grandes fortunas. O problema não será tanto a obscenidade do lucro - obscenidade considerada pelos adversários do capitalismo. O mal está na acumulação de lucros imensos. Sobra uma pergunta: a partir de quando o lucro acumulado entra no limiar da imensidão, passando a pertencer às abjecções que só podem ser corrigidas pela milagrosa mão dos políticos dotados de uma sapiência infindável? Quando é o lucro tolerado e a partir de que dimensão ganha contornos pornográficos?

Terceira observação: o que me deixa desnorteado é a defesa de uma posição que aceita com naturalidade que os ricos sejam proibidos de fazer caridade com parte dos lucros que conseguem gerar. As proibições denotam a espessura de quem as defende. Quando os motivos vêm com a âncora da desconfiança do lucro, dos capitalistas eternos opressores dos trabalhadores e da restante retórica conspirativa, entra-se no terreno onde a discussão é entre surdos. Eis a perplexidade maior: acusam-se os detentores do capital de só quererem acumular riqueza, do alto da sua insensibilidade social. Quando um deles quer ser generoso - e, para já, não discuto se a generosidade é espontânea ou ditada por uma qualquer estratégia - cai sobre ele o opróbrio de querer ditar as preferências sociais através das opções que escolhe para a sua generosidade. Lá diz o adágio: “preso por ter cão e preso por não ter”.

Quarta observação: então se for uma cidadão não abastado a decidir fazer caridade, aí já deixam de funcionar as motivações para a socialização da filantropia? É que o anónimo cidadão não tem segundas intenções com o acto caritativo. Assim se depreende de outra das razões perfiladas contra a filantropia dos ricos: “na forma como é muitas vezes condicionada (p.e. obrigação de compra de determinados produtos e serviços), a filantropia não passa de marketing”. Não sei se as fundações dos abastados são assim tão nocivas ao ponto de fazerem depender a generosidade da aquisição daquilo que eles produzem. O que me provoca confusão é pensar-se que um rico não possa destinar o dinheiro que alimenta a filantropia. Duas perguntas: censura-se Champalimaud por ter deixado em testamento a vontade de constituir uma fundação vocacionada para a investigação médica avançada? Onde está a perfídia da Fundação Gulbenkian, que faz mais pela cultura e pela investigação científica que os ministérios que tutelam os sectores?

Registo que desta esquerda vêm à superfície manifestações que são a negação da sacrossanta igualdade que tanto apregoa. Se todos temos direito a uma religiosa igualdade, como se pode negar o direito à caridade aos “nefandos” capitalistas? Afinal, a caridade não é um direito ao acesso de todos. A desconfiança metódica que a militante teoria da conspiração alimenta é o portão vedado à filantropia dos ricos. E a armadilha onde, afinal, se descobre que nem todos são iguais.

Quanto ao resto, sobra o preconceito - e, conceda-se, todos temos direito ao preconceito. É o que resulta de argumentos como o que considera que a generosidade dos ricos “impõe atitudes pró-mercado, com consequências não esperadas”, sem se explicar porquê; ou de um lapidar “legitima e cristaliza a crescente desigualdade na distribuição do rendimento” - a insinuação de que quando se sanciona a filantropia dos ricos, essa generosidade vem contaminada com o dinheiro sujo que o é sempre o dinheiro com as cores sombrias do lucro. Por fim, a suspeita de que “ao ocuparem o espaço público e mediático, estas fundações enfraquecem os movimentos sociais de base”. As mentes atormentadas que acreditam num mundo binário, os bons e os maus em toda a simplicidade da representação, contemplam a filantropia dos ricos como necessária inimiga dos tais movimentos sociais de base. Não interessa que da filantropia dos ricos possam sobrar efeitos tangíveis. Desde que ela enfraqueça a amplitude dos movimentos sociais de base, deve ser combatida. Ainda que, no final, fique mais pobreza à mostra.

A esquerda radical será assim tão favorável ao combate às iniquidades sociais como se autoproclama? Apesar de odiar adágios populares, não consigo reprimir o seu uso pela segunda vez, socorrendo-me daquele que adverte que “a cavalo dado não se olha o dente”.

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