7.3.08

Tão inteligente e como pode ser tão reaccionário?!


(Inconfidência uma vez escutada, por acaso.)

Às vezes acontece. Pessoas desconhecidas, o encantamento com o que supõem ser uma brilhante inteligência, uma erudição ímpar. Do primeiro contacto, quase impessoal, às conversas que se alimentam, intensas e desafiantes. Uma cumplicidade fermentada pela espessura intelectual, dizem. Assim que o conhecimento vai esbatendo resistências (que, decerto, não deviam ceder ao primeiro passo), para cima da mesa são atirados temas mais frugais – agenda noticiosa, exigindo opiniões que desnudam um estalão normativo. Depressa o encantamento cede lugar à perplexidade, que depressa se acantona no desencanto.

Também fica à mostra a intolerância de quem apregoa imbatível estaleca de tolerância. Enquanto ficou à mostra a espessura intelectual, sem incursões por ideologias ou sem apurar a livre opinião sobre a actualidade, só havia lugar ao encantamento. O caldo entorna-se quando se descobre que aquele, tão inteligente, afina caminho por avenidas diferentes. Avenidas impróprias, dirão as sacerdotisas do lugar a que pertencem (ou devem pertencer) as mentes brilhantes. Desenganadas as sacerdotisas. Afinal não é merecedor de amesendar no banquete das ideias correctas. E estarão a indagar: agora que sabem do tecido normativo que o cobre, não será assim tão inteligente como aparentava.

Acho magníficas as cambalhotas dos que se entronizam no altar do ajuizamento moralmente superior. Sem dúvida que a cada um cabe a sua ética, um lugar muito próprio (porque individual). E a cada um, também, o indeclinável direito de escolher companhias. Já não estou tão certo que haja ideias melhores e outras piores, se elas são cotejadas num exercício interpessoal. Nem me consigo deixar convencer pela metódica indiscrição dos que sancionam julgamentos pessoais pela bitola das ideias, acoplando à rede de relacionamentos apenas os que sintonizam o mesmo diapasão. Nem me impressionam julgamentos por quem se julga aspergir salpicos de superioridade ética sobre os demais.

Não sei se hei-de dizer que é enfadonho, ou pelo contrário hilariante, que pitonisas da superioridade moral enxuguem os indesejados depois de descobrirem um património genético de ideias pouco recomendáveis (na sua maneira de ver). Sobretudo se resvalarem frequentemente para as lições de moral, abençoando os que são acolhidos à sua asa e renegando os que andam pelos antípodas do acertado caminho. É que à sebenta leccionada pertencem axiomas imperativos que são esquecidos à primeira oportunidade. Não interessa denunciar incongruências alheias. Até nas incongruências, a cada um as suas, sem peias em admitir que ninguém delas passa incólume.

É por isso que me exasperam moralismos ensaiados. Se há moralidade aceitável, é a recusa de qualquer moralismo. Até para evitar que os paladinos desta arte sanhuda sejam os primeiros a cair no alçapão que semeiam aos outros. São umas vetustas personagens que se investem na condição de juízes alheios. Porventura para obliterar angústias que as consumam pelo interior, desviam a atenção para o exterior de si. Por esta altura, entoam o ao mesmo tempo admirado e indignado “como é possível?”. O enfatuamento é mais ácido quando a decepção compõe a apreciação do outro. Como foi possível – é a minha vez de usar a expressão de retórica – serem iludidos por alguém tão inteligente e, todavia, senhor de tão abstruso leque de ideias?

Há sempre um truque na cartola para suprimir a descompensação. Sobra como sentença derradeira a que fica a pesar no fio etéreo dos dias: à desilusão (“parecia tão inteligente”) sucede-se o lenitivo que devolve o equilíbrio interior (“mas, com aquelas ideias, a prova de que não é”).

Assim como assim, a cada um – também e sempre – o direito a ladear os umbrais do discernimento. E a cada um o recato da perfídia; o lugar dos que se julgam acima das suspeitas, penhores de um passado imaculado e sacerdotisas de um presente exemplar, arquétipos da boa cidadania, impolutos, tribunais onde os outros são inapelavelmente julgados; e, contudo, todos os atributos esbarram na cambalhota mental tão fácil, e tão difícil de perceber em mentes tão brilhantes, quando as ideias descompassadas contaminam sem remissão quem as exibe. Ao secante “tão inteligente e, contudo, tão (qualquer coisa que não convenha)”, apenas o riso desbragado aos merecedores de inexpressiva importância.

Sem comentários: