29.2.08

O dia que não chegou a ser


A cada quatro anos, para acerto dos caprichos do calendário, o ano engorda um dia. Fevereiro gordo recebe nos braços um vigésimo nono dia. Haverá a tentação de chamar “anormal” a este Fevereiro bissexto – como ontem ouvi perorar um daqueles pseudo-intelectuais da Rádio Universitária do Minho, que põem excelente música e tudo estragam quando debitam pérolas de extremosa (mas pretensa) intelectualidade. Dizia o radialista: “se o mês fosse normal, este era o seu último dia”. Donde, este Fevereiro que calhou em sorte a dois mil e oito é “anormal”. Por ter esticado um dia e ditar que os aniversários de Março em diante se festejem um dia mais tarde.

A anormalidade só existirá na mente de quem considera anormal um Fevereiro engordado quando o calendário de um ano se abraçou a trezentos e sessenta e seis dias. Seria anormal se não estivesse convencionado. A excepcionalidade está registada na clepsidra que bate compassadamente, sem se enganar no ritmo. Nem sequer o ano bissexto é um punhal que dilacera os corpos, como se fosse um jet lag a baralhar as contas de quem marca o ritmo pelo calendário dos dias. A vida permanece normal. A fábrica dos sentidos e dos sonhos não se perturba com o prolongamento de Fevereiro por um dia mais.

A estranheza será que os nascidos a 29 de Fevereiro de um ano bissexto comemorem o aniversário no dia que lhes pertence? Nos outros três anos que intercalam os anos bissextos festejam o dia de anos a destempo, em partilha com as pessoas que nasceram a 1 de Março. Mas até para os que irromperam do ventre materno num excepcional 29 de Fevereiro haverá habituação ao acidente de percurso de festejar aniversários em dias diferentes, consoante esteja ou não inscrita a excepcionalidade do ano bissexto.

Tudo seria “anormal” (e convoco de novo a fina análise do inteligente radialista) se este dia, no seu rescaldo, deixasse um sabor de ausência. Como se, ao final da noite, ficasse a sensação deletéria de que o dia não chegou a ser. Os mecanismos que comandam relógios, habituados a passar do 28 para o 1 quando o Fevereiro se evapora no Março, confundem-se no ano bissexto. Transitam extemporaneamente para Março, quando o Fevereiro ainda se demora por mais um dia. O travesseiro onde repousa a cabeça cansada de mais um dia aprecia o engodo mecânico das engrenagens do relógio, atraiçoadas pelo capricho do tempo que dita um dia suplementar. O cansaço que aterra com o final da noite é a prova de que o dia existiu. Errada a sensação de que o dia não chegou a ser.

Se houvesse o jet lag do ano bissexto, este dia seria a entronização das coisas estranhas. Um dia preenchido por sombras e espelhos. A encenação permanente, como se ao vigésimo nono dia do Fevereiro gordo estivesse reservado um teatro de sonhos, um palco onde todos seríamos a simulação do que ousamos não ser. Os passos seriam sonâmbulas arcadas das sombras que encapuçam as pessoas conhecidas. E o seu contrário: a cada esquina dobrada, um espelho de onde irrompia um desconhecido mas não naquele dia. O dia excepcional do Fevereiro gordo seria o zénite do carnaval não registado no calendário. Um carnaval suplementar, pela folia prolongada no teatro domando as ruas. Para ser revisitado só mil quatrocentos e sessenta dias depois.

Ouvi dizer, sem curar grandes rigores de busca de informação, que há crendices populares que se atemorizam diante de um ano bissexto. São anos que se aprestam às diabruras de bruxas malvadas, que hão-de amaldiçoar um dia qualquer inscrito no calendário de um ano bissexto. Os demónios encerrariam os deuses numa prisão distante, inacessível. Os deuses manietados, incapazes de aspergir toda a sua bondade. Impotentes para domar a maldade inata dos demónios que só se contentam com cataclismos que semeiam morte e miséria. As sombras seriam os espelhos dos demónios malvados.

As crendices fermentam-se na mente de quem nelas acredita. Os anos bissextos são lugares de medo porque há muita ignorância que se encolhe diante do que fuja aos cânones da normalidade. Não percebem que nem tudo o que escapa aos ditames da normalidade entra nas arcadas da anormalidade, com todo o cortejo de incógnitas que são um espelho de sombras desconhecidas que trovejam medo e desgraça. Se calhar, os matemáticos que descobriram que o calendário carecia de um dia de ajustamento são os culpados, os legítimos demónios que se comprazem com o temor que toma conta dos medrosos durante todo um ano bissexto.

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