7.2.08

A antiética da ética


(In Público, 03.02.08)

Incomodam-me as lições pespegadas por supostos sacerdotes de valores que se objectivam em si mesmos. Incomodam-me os telhados de vidro. E, todavia, há sempre gente que se afadiga em apontar o dedo aos outros, àqueles que até se põem a jeito da crítica fácil. A tentação de actuar como denunciante. Não é esta uma peça de exculpação dos devaneios que espezinham a ética. Ultimamente até fomos presenteados por um primeiro-ministro que hesita entre a compulsória imagem que faz de si mesmo como messiânica personagem que “faz história” e alguém cujo passado resgata fragmentos que muito ficam a dever aos convencionados padrões da ética.

Longe de mim defender tal personagem. Não me está no sangue a possibilidade. O que mais me incomoda ainda são as pitonisas do desespero que ficam boquiabertas com os outros que pisam a linha da ética. Desde logo, porque fermentam o estigma da vítima que leva a infausta personagem a aparecer nas televisões com ar de Calimero. Ora, como a populaça gosta de exercer os seus dotes de comiseração abrigando os coitadinhos debaixo da asa, os sacerdotes da ética acabam, sem o saberem, por ajudar a compor a imagem do timoneiro que o quer continuar a ser para desdita pessoal.

Tudo isso é detalhe no meio da nefasta retórica que prega as virtudes da ética, como se fossem as suas pítias imaculada gente que conduz um rebanho atreito a obliterar os traços de ética que devem ser seu norte. Podia-se discutir o que é a ética. A que deve ela obedecer. Este exercício seria suficiente para se perceber que a ética não se objectiva. Concedo: em cada momento, em cada lugar, haverá um mínimo denominador comum que as pessoas respeitam, ou pelo menos dizem respeitar (diferença que é, adiante se verá, significativa). Mas trata-se de um catálogo minimalista de valores que dá substância à tal ética que deve ser bússola de quem não deambula pelos caminhos da dissidência. Além desses mínimos está um vasto terreno de divergência. Muito mais que os consensos que entregam a letargia à comunidade, essa ética pertence ao domínio da subjectividade. Como aceitar que venham algumas vozes protestar contra as entorses à ética cometidas por outros?

Sublinhava lá atrás: o tal mínimo denominador comum da ética que esmagadora maioria diz respeitar. Bem diferente de interiorizar o respeito desses princípios. A diferença entre fazer e dizer que se faz. O dogma da ética esboroa-se nas ruínas da consciência individual, nas ruínas resguardadas no íntimo de cada indivíduo, naquela dimensão inexpugnável jamais exposta aos outros. Desconfio muito daquelas personagens assépticas, exarando a sua cândida alvura que proclama uma ética invejável. Oferecem-se como faróis da ética, encavalitando-se num púlpito de onde ajuízam os comportamentos dos outros. Só a impressão de que há consciências que apascentam as consciências dos outros deixa-me apoquentado. O manto enraizado da educação católica é o adubo plausível: o hábito de ajuizar as atitudes dos outros é faca invasiva que entra fundo na intimidade do ser. Desconfiança metódica: a tentação de ajuizar os outros é válvula de escape para evitar a introspecção que desnudaria os pecadilhos inconfessáveis.

As pitonisas do desespero sentenciam: esta é uma terra carente de ética. Entregam-se à generosidade social, predispostas a oferecer soluções que varram as excrescências antiéticas para o canto onde são lapidados os alvos da censura social. Os males da paróquia são intermináveis. Mas quando se debruçam sobre os atentados à ética, sobre o que elas avaliam como o ausente fundo de ética que é o leito onde navegamos, soltam a sua notória preocupação com as doenças que nos mirram. São os sacerdotes da ética e, ao mesmo tempo, médicos com as soluções milagrosas para restaurar o “deve ser” imperativo de onde não devíamos ter descarrilado. Não admitem que alguém questione as suas credenciais éticas. Estão acima de qualquer suspeita. Põem-se acima de qualquer suspeita.

Contudo, noto alguma pestilência quando certos predestinados (que assim se consideram) se elevam no firmamento e dão lições de moral aos coitados que deslizam para além da fronteira da ética. A aura iluminada que os bafeja encandeia os demais, incapazes de discernir os pecadilhos que as pitonisas da ética cometem, afiando a faca no gume da apetecível antiética. É que é fácil colocar um pé – ou até os dois – no palco onde se acolhe a antítese da ética quando se é sacerdote da ética. No rescaldo, o deserto da ética.

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