7.1.08

O mundo nos seus contrastes: da opulência à indigência


No epitáfio do escritor Luís Pacheco, um dos traços salientes foi a indigência que atravessou a sua vida. Pacheco terá morrido às portas da miséria. Não é a primeira vez que o desapego material é congénito à biografia de escritores. Sobretudo de escritores que o foram grandes, sem serem ícones do estrelato comercial. Não terão sido escritores campeões de vendas, mas a obra que deixaram é testamento da estatura enorme que atingiram. E, no entanto, ou porque tiveram uma vida de devaneios, ou porque os bens materiais nunca foram prioridade, atravessaram dificuldades de sobrevivência, por entre os corredores exíguos da penúria.

Há dias, num programa televisivo sobre Herberto Hélder, ficou documentada a indigência que o poeta passou quando deambulou por Paris e Amesterdão. Sem casa para viver, aos caídos entre estações de comboios e casas de banho públicas. Hoje, já restabelecido para uma forma de viver mais estável, sobrevive com um salário frugal de seiscentos euros. A certa altura, passaram imagens de uma reunião de trabalho da equipa envolvida no documentário. A propósito das dificuldades, diria da impossibilidade em entrevistar Herberto Hélder, porque o poeta se recusa a aparecer em público – sequer a deixar-se fotografar. O director do documentário avisava os membros da equipa da tarefa impossível. E dizia que iam deparar com um homem que vive mergulhado em dificuldades financeiras (o tal salário frugal) e que, todavia, recusou há anos o prémio Pessoa que lhe poderia ter valido trinta mil euros.

A cada passo que tropeço em biografias de escritores grandiosos que viveram um mar de dificuldades, por opção ou por contingência, fico impressionado. As experiências de vida de Luís Pacheco e de Herberto Hélder serão diferentes. Entre eles há um traço comum: o desapego material, o nada terem feito para amealhar alguma fortuna – até a percepção que fugiam do bem-estar material. Quantas pessoas vivendo as dificuldades típicas de quem aufere seiscentos euros por mês teriam recusado um extra de trinta mil euros que, decerto, iria compor o magro orçamento? O poeta, deixando falar mais alto princípios de que não abdica, declinou a distinção. O preço a pagar pelo refúgio no mais completo anonimato de vida, apesar da condição tão difícil de garantir pela produção literária que o distingue no firmamento das letras. (E seria acertada a provocação de Luís Pacheco, entrevistado no documentário sobre Herberto Hélder, que alvitrou que o refúgio do poeta é apenas marketing pessoal?)

À volta, o que mais se vê é opulência. Em muitos casos, ostentação gratuita. Até, dizem-me pessoas conhecidas que estão por dentro da banca, consumismo acima das possibilidades. Não vale a pena ensaiar uma sociologia do consumismo viciante que leva ao endividamento para além do razoável. Nem tão pouco interessa denunciar esses hábitos, engrossando a maré que tenta desconstruir os alicerces do capitalismo pela pornográfica dependência do consumismo. Só quero registar o contraste entre aquela maioria que não abdica do conforto material e faz dela sua substância estupefaciente e a minoria que está nos antípodas dos valores materiais que conduzem os primeiros.

Contra mim falo. Há vícios de consumismo que me fascinam. Grande o pecado se confessar que adorava ser proprietário de um Porsche? Poderia elaborar em minha defesa. Dizer que é o imenso gosto por automóveis, pela condução de potentes automóveis; e não manifestação grotesca de exibicionismo de quem passeia automóveis muito caros apenas como sinal da afluência material, esfregando na cara dos outros sinais do seu sucesso. A justificação não é suficiente para me deslocar do altar dos devotos do materialismo. Abstraindo dos sonhos quase irrealizáveis, há mínimos de subsistência que obrigam à entrega a valores materiais. As contas para pagar, uma casa para viver – e agora que se convencionou, para deleite dos bancos, que todos temos o direito a ser proprietários da casa onde vivemos. Roupa para vestir, a alimentação que provê a subsistência. Alguns objectarão: fomos educados para um nível de vida (os tais mínimos) que obrigam a empenhar a vida em prol desses sinais. E, depois, o que resta? Depois das contas esforçadas do orçamento familiar, pouco tempo para fruir a vida.

É, por tudo isto, incomensurável a admiração pelos desprendidos dos valores materiais que, por opção ou por contingência, vivem no limiar da indigência. (Não os que são empurrados, involuntariamente, para a pobreza absoluta.) Aos que se mantêm fiéis a princípios de que não abdicam e declinam os louros do exibicionismo material. Há quem diga que é matéria-prima necessária para a grandeza da criação literária. Do contraste maior entre o desapego material, que os coloca no limiar da indigência, e a grandiosidade da obra produzida. Porventura, só possível pelas carências passadas que os predispõem para páginas tão brilhantes de literatura.

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