3.1.08

A inteligência que se consome


Mote: a inteligência limita a autonomia humana.

É a sociedade do conhecimento. A iliteracia é a forma moderna de analfabetismo, pelo menos nos países que se gabam de pertencer ao clube dos mais desenvolvidos. Cada vez mais a inteligência distingue os aptos dos inaptos, os que vingam dos que ficam para trás. Há muitas formas de inteligência. Todas são enaltecidas: ingredientes necessários para a sobrevivência na idade moderna em que vivemos.

E, todavia, a inteligência pode conter as suas dores. Tremendas dores que fertilizam dúvidas existenciais. Ter os olhos abertos e procurar entender os fenómenos em redor pode ser uma experiência dolorosa. Quantas vezes o exercício da inteligência traz o sabor desagradável de discernir o que não gostaríamos de discernir? O odor fétido do mundo. As classes a que as coisas se reportam, com a inversão das tabelas que ordenam as coisas. Os comportamentos que fazem a inteligência contorcer-se sobre si mesma, interrogar-se se afinal há inteligência no mundo pintado diante dos nossos olhos.

A sucessão infindável de interrogações, que só o exercício da inteligência cauciona, entrega-nos às portas de uma encruzilhada. É quando damos conta do estreito caminho alternativo por onde seguimos, diferente da linha contínua onde se afunila o mundo inteiro. Nessa altura entoa bem alto a pergunta maior: se afinal vegetamos na ininteligível forma de ser, penhores do deserto de inteligência. A inadaptação ao mundo: sinal da ausente inteligência, ou apenas um lado obscuro da inteligência que se revela inadaptada ao mundo que a circunda?

Quero crer que não ando nas margens da inteligência. Confesso: se há coisa que me atormenta é despertar de um sonho que espalhou o convencimento da ausente inteligência. É do que mais perturba quando me situo diante do mundo. Só que esta inteligência é uma consumição do ser. A fonte de todas as quedas no precipício, quando a inteligência transporta leituras que semeiam a incompreensão do que está em redor. É a inteligência que alimenta a contínua revelação do ambiente hostil. Fermenta as dores que encerram o corpo na existência de cada dia pungente.

Ao contrário do que rezam os manuais zelosamente escritos pelos pedagogos do regime, a inteligência é um espartilho humano. Não é a carta de alforria que liberta das totalitárias expressões que limitam a autonomia humana. Se muitos acreditam que só através da inteligência há descomprometimento para ajuizar o que os mandantes querem impor, no subterrâneo do pensamento vogam as retorcidas algemas que aprisionam a autonomia humana. A inteligência ao nosso dispor acaba por ser a maior prisão. É ela que sacia a sede de conhecimento, desdobrando o catálogo das interrogações que trazem incógnitas ou apenas respostas que não são as mais confortáveis. Ficamos reféns das perguntas que não têm resposta, ou são penhores das respostas a que não gostaríamos de chegar.

As coisas encerram-se no seu paradoxo. Ao contrário do convencionado, a inteligência não é sinónimo de emancipação humana. Limita-se a restringir a autonomia humana. É o que sinto quando a inteligência desperta e incendeia as cores agrestes com que o mundo aparece pintado. É quando apetece ter sido o contrário da inteligência dolorosa que me consome, dominado pela ignorância que permitiria a discrepância do mundo em redor. Seria uma ignorância terapêutica, caritativa, o condão de descerrar diante dos olhos um simulacro do mundo que me acolhe. Ao menos não haveria as trovoadas quotidianas que amedrontam. Nem teria que atravessar todos os dias as ruas lamacentas até chegar ao sossego da casa onde, talvez, atinja o refúgio da inteligência que não cessa de me consumir.

Há cansaço da inteligência que proclama a glória vã dos que, garbosos, ostentam a sua tão elevada inteligência. Não sabem, coitados, que muitas varas açoitam os corpos vaidosos da inteligência que os remete à doença maior: a perda de autonomia, oferecida no altar da inteligência de que se gabam.

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