21.1.08

Culto de personalidade


Impressionam-me pessoas que se deixam passear na tela do culto de personalidade. Há neles um ego enorme. Ou houve, em tempos, tempos difíceis, sinuosas curvas em que foram depreciados. Talvez meninos escarnecidos por todos na escola, os bombos da festa. Agora, que souberam subir na escala do reconhecimento social, têm a sua vingança privada com o mundo inteiro – como se o mundo inteiro fosse o laboratório gigantesco que reproduz o microcosmos que tanta mortificação interior causou pela troça infindável.

Mesmo assim, impressiona-me que haja quem permita uma corte que se desfaz em tratos de polé, a corte do elogio fácil. Uma imagem quase deificada. Dir-se-ia que dariam chancela a biografias com estaleca de hagiografia. Gostam de ver a passadeira vermelha estendida para nela caminharem, exalando aura triunfante. Os outros devem-se curvar perante a sua magnificência. À medida que o tempo corre e as auto-façanhas o colocam num púlpito ainda mais inacessível aos outros, mais se arrebanham indefectíveis doutrinados para trazer mais rebanho para dentro da cerca.

Não há pingo de modéstia na personagem que permite o seu próprio culto de personalidade. Os pajens de serviço, os que lhe fazem a imagem e aqueles que dele dependem, constroem o culto de personalidade que a domesticada comunicação social faz chegar à gente anónima. A gente anónima, consumidores por excelência do culto de personalidade do timoneiro da nação. E assim aumentam as probabilidades de prolongar a sinecura com a esmagadora maioria que lhe caiu nos braços num tremendo golpe de sorte. Na carência de substância – visível à vista desarmada – insiste na praxis da imagem cirurgicamente arquitectada. A cada mês que passa, sobe o tom dos panegíricos vindos da corte em redor. Os que não vão na ladainha laudatória, ou são ignaros ou é a teimosia que os cega no discernimento.

O pior é que não há um dia, um dia sequer, em que o ego do timoneiro não seja massajado na televisão. Até ao fim-de-semana. O homem não tem descanso. Não tem sábados, domingos e feriados. Não vá a sua imagem apologética adormecer no espírito das massas, não vão elas esquecer-se, por um dia que seja, que há primeiro-ministro redentor. Este fim-de-semana foi outro sem igual. Num dia, confessa, num acesso de intimismo que o coloca quase ao mesmo nível humano dos governados, que o homólogo espanhol é o seu “maior amigo”. Haja muitos dentes para mentir – terão pensado os seus verdadeiros amigos, aqueles que nutrem por ele uma prolongada amizade.

Mais uma cimeira – ibérica –, mais um tijolo para o imenso culto de personalidade. Em muito feito da convivência com os “líderes mundiais”, cuja grandeza alimenta a sua própria grandeza, por efeito de contágio. Espantosamente, o timoneiro terá confundido a natureza da cimeira. Pensava-se que era a cimeira ibérica, reunindo delegações dos governos dos dois países da península. Afinal terá sido uma cimeira da internacional socialista, delegação ibérica. O homem esqueceu que estava ali na função de primeiro-ministro e descaiu-se no apoio ao seu homólogo, da mesma cor ideológica, que já está em campanha eleitoral. São comoventes estas fidelidades partidárias, só possíveis entre a ternurenta internacional socialista. Como comovente foi ver a imodéstia do timoneiro da nação ao oferecer os préstimos ao homólogo, caso fosse preciso para o levar até a nova vitória nas urnas. Há gente que faz de si uma imagem muito maior do que a revelada pelo espelho.

Domingo, Viana do Castelo. Ia inaugurar uma biblioteca municipal. Madrugou para participar na mini-maratona local. Veio mesmo a talho de foice. Afinal o patarata do líder do maior partido da oposição estava enganado no diagnóstico recente: falsas as acusações de que o senhor primeiro-ministro só chama as câmaras de televisão quando faz jogging além fronteiras. As câmaras também são convocadas para jogging em terras pátrias. Para pateta, pateta e meio.

A reportagem da RTP foi do mais encomiástico que vi nos últimos tempos. O homem chegou cedo. O homem envergava o número um – não é significativo, a provar que estou certo quando lhe atribuo o cognome de timoneiro? Aquela prova era apenas um petisco para o homem, que disse, gabarolas, que não foi esforço por aí além, ele que está habituado a correr “uma hora, uma hora e dez, cerca de dez quilómetros”. Ao passo de corrida juntavam-se intermináveis acenos à populaça espalhada pelas ruas para o aplaudir, com entusiasmo.

Cultos de personalidade provocam-me asco. Este não é excepção. O que me incomoda no homem é o tanto asco que me causa. Ele insinua-se, entranha-se, cerca por todo o lado, com o beneplácito da domesticada comunicação social, veículo do culto de personalidade. Para minha sanidade mental, queria prometer que não voltaria a escrever uma linha sobre nefanda personagem. Temo que não consiga cumprir a promessa. E não é que até nisto sou contagiado pelo timoneiro?

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