19.11.07

Porque falta sal ao Outono


O restolho outonal anuncia os frígidos ventos que tardam. Chuvas intempestivas que demoram a chegar. Não será pelas explicações dos novos arautos da desgraça – os ambientalistas – que se desenham as razões do estio em pleno Outono. É nos humores dos elementos, variáveis, que manobram por entre os extremos das estações. Ora secas e calorosas, ora prantos de vendavais e chuva incessante. A normalidade que passou à condição de excepção. Ao corpo, resta habituar-se.

E, no entanto, parece que o corpo estranha as estações trocadas. Carente da chuva que chega com os ventos atlânticos, o corpo entrega-se a uma secura de emoções. As ruas estão cheias das folhas acobreadas que tingem a falta de humidade. Mais do que noutros Outonos, quando os pés calcam as folhas sente-se um ruidoso estalido, sinal das folhas inertes que tombaram exangues de água. Dá-se o efeito de contágio aos corpos, como se a aridez que estala nas folhas pisadas subisse pelo corpo e se apoderasse dele. Que fica impassível diante das tragédias, inerte aos afectos, um imenso deserto que vem secar os mares onde pontuam as emoções.

Diria: que falta o sal ao Outono. Que o prolongamento do Verão, na forma de uma Primavera fora de tempo, transtorna os espíritos. A mistura insossa que irrompe à superfície é a tela tristonha de uma outonal estação que se demitiu das promessas a cada dobrar do equinócio de Setembro. Nos espíritos, uma desorientação de quem se ausentou da sua bússola. Haveriam as estações, na sua sucessão natural, de instalar os pontos cardeais que conduzem os corpos na sua plácida caminhada. Agora já não.

Ao invés, a perturbante transformação do calendário é a reclusão dos sentidos. Não é só as estações que mudam. Os seres, também. Não. Dirão alguns que não podem os elementos representar o papel de bússola dos humores humanos. Que não podem as pessoas entregar-se à ditatorial razão das estações transtornadas. Ditam a sentença: há amesquinhamento da pessoa quando se insinua que ela anda ao sabor dos ventos erráticos que misturam estações fora da estação. Contra o pretexto dos elementos, procuram a explicação fora das loucas estações. Ajuízam o divórcio entre os fenómenos meteorológicos e o andamento do espírito. O Homem é maior, muito maior, que o jugo das estações.

Só que a estranheza das estações extemporâneas parece deixar cicatrizes por sarar nos corpos expostos à brandura ou à intempestiva força dos elementos. Dá-se o caso das pessoas andarem diferentes. Taciturnos, os que olham aos céus e suspiram, melancólicos, pelas ausentes nuvens escuras que despejam dilúvios que começam a entrar para o repositório das saudades. E infinitamente alegres, os que mergulham numa profunda tristeza de cada vez que o seu amado sol fica dias a fio encoberto pelas nuvens britânicas que precipitam a chuva interminável.

Os dias estivais deviam ter garantia de calendário. Os mecanismos do tempo deviam ser automáticos. Como se fosse imposto Outono por decreto e o respeito da lei forçasse a entrada dos dias ventosos, das tempestades que sopram ventos atlânticos com a força húmida do sudoeste, as vagas alterosas que esbarram com estrondo nos molhes heróicos, as árvores inclinadas pela força do vendaval outonal, os primeiros dias de frio que convidam ao resguardo no primeiro borralho que há-de ter dias mais longos quando vier o Inverno gélido. A cada dia de ausente Outono, é como se a interior agulha da bússola andasse trepidante, e louca, com a única certeza da desabituação das estações fora da estação.

A rotina das estações é quebrada pelo ensandecer dos elementos. Espalham os sedimentos de diferentes paragens, onde as temperaturas suaves e os consecutivos dias soalheiros costumam habitar. É como se até nós viesse uma diferente geografia, dedilhada pelos ventos transviados que semeiam estações extemporâneas. É então que os corpos se sentem estranhos, personagens fora do seu lugar – como se habitassem os sítios onde são habituais as estações aqui fora da estação, sem saírem do lugar que sempre os viu respirar. O sal ausente.

A falta do sal do Outono – que, por fim, parece chegar quando o Outono já declina em favor do Inverno – apascenta o outro por descobrir que vive escondido nas catacumbas. Sem o sal de sempre, na inércia das emoções, na impassibilidade das reacções faciais. Ou, no seu extremo, através do cansaço de quem anseia pela normalidade das estações que se demoram e enfurecem ao destapar a insossa veia que vive, latente, só à espera dos anos em que as estações teimam em navegar fora do seu tempo.

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