14.11.07

Intervenção cívica, ou a covardia?


Da última vez que estive em Espanha, deu brado uma bárbara agressão. Dentro do metro de Barcelona, numa carruagem quase vazia, enquanto falava ao telemóvel e esbracejava furiosamente um rapaz vomitou raiva sobre uma jovem equatoriana que teve o azar de coincidir com o energúmeno naquela carruagem, naquele dia, àquela hora. O acto ficou registado nas câmaras instaladas nas carruagens do metro. Como se não bastasse a estupidez inata do agressor, dose redobrada por nem sequer se lembrar que a fobia pela segurança espalhou câmaras de vigilância até no interior das carruagens de metro. Burro a dobrar, pois.

As imagens são aterradoras. Sem que nada o fizesse prever, enquanto deambulava de um lado para o outro falando ao telemóvel, o rapaz desferiu um pontapé na rapariga que, desatenta, olhava para o exterior através da janela. Ele continuava a falar ao telemóvel enquanto repetia os pontapés. Como se fosse a jovem equatoriana culpada pela discussão que ele mantinha com alguém do outro lado do telemóvel. Entre pontapés e socos, a rapariga permanecia quase inerte, incapaz de reagir. Até que aqueles intermináveis instantes (pouco mais de um minuto) chegaram ao fim quando o metro parou na estação seguinte e o endemoninhado rapaz saiu da carruagem, com a mesma tranquilidade de quem acabara de ler um livro para matar o tempo da viagem.

As câmaras de vigilância tinham acabado de desnudar a brutalidade em toda a sua crueza. Só imagens, sem som. Não era possível perceber o que motivara tamanha ira do agressor. Nem se percebeu se, durante o cortejo de socos e pontapés, adicionou à agressão ofensas verbais. Não parecia: enquanto durou a agressão esteve quase todo o tempo agarrado ao telemóvel. E depois saiu como se nada fosse – como se praticar karaté num desconhecido fosse o acto mais natural do mundo. A bravura do lutador encaixa-se no protótipo doentio destes valentes: regurgitam brutalidade quando sabem que a vítima é mais fraca. Duvido que tivesse libertado a raiva se, em vez da franzina adolescente, estivesse ali sentado um homem coriáceo. Estamos habituados a esta valentia: só grita quando se insinua aos mais fracos.

Não fosse já doloroso ter sido testemunha da agressão, mais custoso se tornou o acto porque na carruagem viajava uma terceira pessoa. Estava atrás do agressor e não esboçou a mínima reacção em defesa da inocente rapariga. Desviou o olhar. A certa altura, incomodado (não se percebe se era mulher ou homem), virou-se para o lado contrário da orgia de violência. Não se levantou para dissuadir a agressão. Não se terá escutado qualquer reprovação – as imagens mostram os lábios sempre cerrados. Aquela pessoa foi observadora passiva da agressão. E cabe perguntar: se fosse eu a viajar naquele momento e fosse testemunha da violência boçal, teria a mesma passividade?

Qualquer pessoa, perante a brutalidade gratuita que os olhos vêm no écran, diria que não ficaria impassível. Que, pelo menos, reprovaria por palavras o ensandecido agressor. Outros, mais dados à valentia física, haveriam de se erguer do lugar para impedir a agressão. Nem é preciso alegar um imperativo de intervenção cívica para certificar que um desses seria o comportamento. A intervenção cívica que se exige quando alguém é vítima de violência. Até diriam, em jeito de conclusão, que a passividade seria uma covarde demissão de si mesmo, a denegação do civismo. Possivelmente, até, a inércia sinalizaria a conivência com a agressão.

Também tive essa reacção. A reacção espontânea de quem não consegue ficar insensível à selvajaria que ensombrava mais ainda o subterrâneo onde navega o metro. Depois repensei. E interroguei-me se não ficaria lívido ao testemunhar aquele acto que não merece adjectivação, de tão soez. Se não seria derrotado pela covardia, empurrado pelo desejo de preservar a integridade física. É que, na voraz loucura que consome o mundo, saberia eu se aquele agressor não voltava a ira contra mim se o tentasse apartar da jovem que recebia socos e pontapés? Saberia eu se ele guardava na roupa uma arma branca, arremessada contra mim se pela força o conseguisse domar?

Os imperativos da intervenção cívica são princípios belos, uma obrigação indeclinável de quem se julga “bom cidadão”. Só que acima do “bom cidadão” está a vida da pessoa. A pressa da heroicidade poderia trazer os derradeiros instantes de ar respirado, perante a incerteza que se soltava da alma atormentada que agredia sem parar. É que a intervenção cívica depende das circunstâncias. E duvido que alguém, no seu perfeito juízo (ou sem dotes de lutador) arremetesse contra o irado agressor estando ali sozinho com ele.

Há alturas em que a covardia é o único acto possível. Pode transtornar a consciência: porventura nos dias seguintes teria um insuportável peso deitado sobre a consciência, pela passividade diante da inexplicável agressão. Mas ao menos teria ainda vida para lamentar as dores de consciência. Sempre melhor do que já nem sequer haver tempo para lamber as feridas – ou as da consciência condoída, ou as deixadas pela selvajaria do agressor.

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