23.10.07

Nem o pseudónimo lhe valeu


Houve um dia, já remoto, em que um homem de meia-idade, boçal, entrou no gabinete. Estava lá para se queixar, de tudo e contra todos. Tinha uma ideia vaga do mundo, tido como um resumo do pouco espaço que gravitava em seu redor. O bigode farfalhudo aparava os salpicos de saliva que gotejavam a raiva incontida nas palavras amargas, agrestes, por vezes grotescas. No melhor dos exemplos da suprema ignorância: dos que se fazem passar por expoentes da inteligência, quando nidificam na mais rasteira falta de inteligência.

O primeiro impulso foi terminar a conversa ao fim de poucos minutos. O homem incomodava-o, profundamente. Aquela boçalidade mental era um atentado, soez. E, contudo, deixou o tempo escorrer, deixou o homem expandir a imbecilidade descontrolada. Perante os queixumes, entrecortados com fina análise social a destempo, sentia-se dividido ao olhar para o homem que não parava de falar. Tanto queria pôr um ponto final na conversa, com a mão abrupta que a arrogância do homem merecia, como se deixou anestesiar pela sucessão de dislates exarados a cada instante, só para certificar até onde ia a necedade de uma pessoa.

A raiva soltava-se entre os dentes, perfumava cada palavra com o odor fétido de uma cabeça inquinada por uma visão distorcida do mundo. Os olhos fulminavam-no, com uma ferocidade assustadora. Não que temesse pela integridade física: ainda que o homem fosse assustador, ainda que não fosse difícil adivinhar que era um agressor em potência, estranhamente não se sentia ameaçado. Talvez porque a raiva não lhe parecia dirigida. Talvez porque ele era, naquele momento, o confessor que amparava toda a revolta do homem – contra a universidade que o acolhera, trinta anos depois de ter deixado os bancos da escola; contra os alunos que coincidiam no mesmo curso; contra professores que acusava de inépcia, incapazes de manter a disciplina e, no seu supremo julgamento, incompetentes; contra o país inditoso, que perdera há muito o rumo, mergulhado numa profunda crise de onde não se antecipava saída; contra o mundo que ele desenhava como uma conspirativa força unida contra a sua pessoa.

Os disparates de enfiada iam crescendo de intensidade. A certa altura, por ocasião do protesto contra a indisciplina dentro das salas de aula, asseverou que o problema era a falta de pulso dos professores. Sintoma de como o mundo estava torto. Os professores deviam esbofetear os indisciplinados para os pôr na linha. Diante do sociopata, olhou-o nos olhos, deixando de escutar as palavras poluídas de indigência mental. O homem continuava a debitar o absurdo, mas já nem o ouvia. Perante o sociopata, apeteceu-lhe ser o mandante de uma brigada de energúmenos que dessem caça, pelas ruas da cidade, aos sociopatas que dependiam da violência como oxigénio da sua existência. Enquanto o homem teimava em desfiar o rosário de acusações, do outro lado imaginava o gosto perverso dos energúmenos a cometer atrocidades sobre o sociopata. E de como ele se acovardava, suplicando por misericórdia, invocando o nome de santas da devoção e os filhos – como se os filhos lhe pudessem valer, ou como se eles tivessem responsabilidade pela idiotia do progenitor.

Anos mais tarde, quando compulsou memórias em livro, ficcionou este episódio. Os nomes eram fictícios. Até o seu, como autor, escondido sob um pseudónimo. O livro viria a ser um êxito editorial. À terceira edição, a editora organizara o lançamento com direito a cerimónia solene, seguida de sessão de autógrafos. Ao fim de mais de uma hora de cansativo dedilhar da caneta, já exangue de tanto autografar, surgiu-lhe pela frente um homem idoso, maciço, farfalhudo e grisalho bigode, os olhos vidrados, estendendo maquinalmente o livro sem proferir qualquer palavra. O cansaço tirara-lhe o discernimento: era mais um comprador do livro, mais outra anónima pessoa que passara diante da mesa onde eram produzidos os autógrafos.

À medida que abria o livro na página escolhida para o autógrafo, perguntou ao homem qual o seu nome. “Severino”, saiu-lhe, seco, com uma voz forte emprenhada por um acentuado sotaque minhoto. “O mesmo Severino que lhe apareceu no gabinete nas páginas desse livro. Não trouxe a brigada de energúmenos para me pôr no sítio? Aproveite que estou aqui, diante de si, preparado para tudo”. Lívido, olhou a medo para cima, onde estacionara o homem consumido pela idade, em tom desafiante. Antes que pudesse balbuciar o que quer que fosse, o homem voltou-lhe costas com um esgar cínico, deixando o livro a meio do autógrafo. Disparou, triunfante: “como vês, nem o pseudónimo te valeu”.

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