29.10.07

Jogos de guerra


Há quem se entretenha a brincar às guerras. Arranja-se um grupo de amigos, de preferência com a colecção inteira de filmes do Rambo, Vandamme e outros espécimes que consagraram a violência como “arte”. Gastam-se verbas absurdas na compra de material bélico. E vão juntos para o mato, equipados a preceito e com o sangue a ferver na ânsia de disparar uns tiros que causem “baixas” entre o “inimigo”.

Os “camaradas” afirmam que o jogo de guerra em que participam é um acto de nobreza. Explicam-se: usam armas sofisticadas, tal como se estivessem numa guerra a sério. A única diferença é que as munições são a fingir. Por mais que ali destilem um inexplicável (para mim) sentimento de violência gratuita, sabem que passariam dos limites se o jogo se confundisse com realidade e, no rescaldo, houvesse feridos e mortos a contabilizar. Não podendo as munições aleijar os jogadores, entre eles existe um código de honra. Têm que honrar o compromisso de se darem como baixa assim que são atingidos pelo “inimigo”. É isto que significa o acto de nobreza.

Há quem se contente com pouco ao explicar conceitos. Há aqueles cuja estreiteza de vistas não deixa alcançar mais longe, ofuscando lados escondidos dos conceitos que usam. O que me deixa atónito é empregar-se a palavra “nobreza” para caracterizar um jogo que é a negação de qualquer sentimento positivo. Se dúvidas houvesse, bastava escutar os testemunhos excitados de alguns dos participantes na refrega. Equipados a rigor, com fardamento militar e caras pintadas com as cores esverdeadas escuras apanágio da tropa, falam como se estivessem embrenhados num palco de guerra. Linguagem bélica e tiques de disciplina militar. A pose de combate, enquanto se esquivam entre a vegetação rasteira, de arma em punho, as botas escorregando pelo terreno lamacento. Sempre atentos à possibilidade do “inimigo” aparecer de surpresa para um ataque que pode liquidar os contendores do jogo.

Faço uma derivação por uma notícia que tinha lido horas antes. A propósito da violência nas escolas, um inquérito à população escolar revelou que dois em cada três alunos confessou já ter envergado arma de fogo dentro da escola. Reúno as pontas do novelo. Misturando as imagens de violência gratuita que escorrem com frequência de filmes que sagram o género – os tiros de rajada, explosões que dilaceram corpos e coisas, bonecos que se despedaçam figurando a ausência de valor da vida humana, como se ela valesse tanto como um pacote de arroz ou um quilo de cenouras. E há os videojogos que levam o género ao limite. Mata-se a eito, como se as vidas das personagens que aparecem pela frente fossem escolhos descartáveis, apenas coisas que se pode liquidar com uma frieza lancinante.

Há alturas em que a ingenuidade é indeclinável. Há pouco fiz alusão à desvalorização da vida humana na bolsa das coisas – sim, das coisas, que por andar de rastos só apetece assim qualificá-la. Quando se brinca às guerras, partindo à caça do “inimigo” para o liquidar, é disso que se trata. Apoucar a vida das pessoas. Ainda que tudo não passe de uma simulação, o seu simbolismo encerra o significado do que se passa à nossa volta. Há quem não hesite em esmagar a vida de outrem, como se fosse um percevejo que incomoda e é calcado impiedosamente. As guerras a brincar são a transplantação das guerras a sério, com o grau zero de dignidade, em rigor, a inanidade elevada ao expoente máximo.

Aos valentes que fazem lazer com os teatros de guerra simulados, dois conselhos. Primeiro, umas consultas de psiquiatria. Para avaliar os distúrbios de personalidade que alimentam esta perversão de valores. Porventura a terapêutica consistirá em leituras assíduas, visitas a exposições de arte, espectadores regulares de peças de teatro alternativas, cursos de culinária, voluntariado que acalme o espírito. Pode suceder que nem assim a cura se consiga sobrepor à enfermidade mental que os apoquenta. Aí sobra o segundo conselho: façam as malas, emigrem para um teatro de guerra, daqueles onde as balas disparadas são a sério, onde as emboscadas se sucedem no instante que menos se espera, onde os corpos se desfazem em mil pedaços. Que pulem de teatro de guerra em teatro de guerra, perseguindo um trilho de sangue e morte e bombas e tiros disparados em abundância. Até que chegue a sua hora. Ao menos terão o prazer supremo de morrer num campo de batalha - a sério. Naquelas cabeças muito estreitas não haverá objectivo mais alto na vida.

Não consigam derrotar a patologia, o segundo conselho traz-lhes outra vantagem: soube há tempos que os mercenários que vagueiam de guerra em guerra são pagos a peso de ouro (cerca de novecentos euros por dia!). Mão-de-obra com elevada qualificação, portanto. Quando soube deste preço da carne para canhão das guerras, saltou a certeza de que o mundo ensandeceu e não se lhe augura panaceia.

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