3.9.07

O imperativo de procriar

A voracidade com que somos confrontados com a interrogação das pessoas, que querem saber quando engrossamos a prole. Diria que existe uma conspiração que se alastra a todo e qualquer cidadão e que pressiona para que venha mais um filho na asa da cegonha. Chega a ser cansativa a pergunta: “quando vem o segundo?” e fico inquieto. Inquieto que as lucubrações do “Eng.” Sócrates, agora viradas para a promoção da natalidade, tenham contagiado a população. Não é tanto pela repetitiva nota que chega aos ouvidos, como se de tanto o assunto ser aflorado se desencadeasse uma gravidez por acto quase espontâneo. O que me deixa assoberbado é a candura com que os cidadãos acatam as determinações do “Eng.” Sócrates, acefalamente, sem perceberem que o fazem nem as suas consequências.
Já sei da ladainha toda: que há uma crise demográfica. E se não desatamos a contribuir com mais filhos, daqui a uns anos (ou serão décadas?) viver na Europa torna-se insustentável. Porque a população vai envelhecer tanto que um dos sedimentos do Estado moderno esboroa-se. As reformas e as pensões deixarão de ser financeiramente suportáveis, a menos que estejamos dispostos a pagar mais impostos (a receita infalível). Perante estes sintomas de crise, há um imperativo que é de todos – pelo menos daqueles que têm constituída família e que se encontram em idade de procriar. O dever de fabricar filhos. A expressão é propositada. Fabricar filhos, como se eles passassem a ser mercadorias com utilidade social. Porque é disto que se trata, de alimentar as maternidades apenas porque alguém idealizou que a crise demográfica tem solução através da multiplicação da prole.
É curioso como há ciclos temporais que resgatam laivos de antanho. É que outrora, quando a pobreza e a miséria campeavam, sobretudo nos meios rurais, as famílias eram numerosas com um objectivo delimitado: os muitos filhos eram força braçal nos campos, a garantia do sustento familiar, que era necessário amanhar a terra e ficava mais barato (de graça, para ser rigoroso) empregar a descendência do que contratar homens à jorna. A constituição de família copiosa era um dever alimentado pela necessidade, com o travo materialista pouco compatível com os padrões actuais que ensinam que as crianças não devem ser açambarcadas para fins materiais. É sabida, e acertada, a forte censura social que se exerce sobre episódios de trabalho infantil.
Os tempos mudaram. Prosperámos, a indigência foi sendo remetida a bolsas de pobreza delimitadas. Os hábitos também mudaram: as exigências profissionais deixam pouco tempo para uma vida a dois, quanto mais para dedicar atenção a uma abundante prole. Por mais dura que seja a constatação, ter filhos passou também a ser uma decisão financeira: o infantário custa caro, a roupa é cara, os cuidados de saúde exigem um seguro que se adiciona às muitas responsabilidades ao fim do mês. É crescente o número de agregados familiares compostos pelos progenitores e um filho só. É aqui que a interrogação, intrusiva para quem ela é destinada, esbarra com uma frequência galopante nos últimos tempos. “Quando vem o segundo?” A placidez obriga a resposta diplomática, que tem o inconveniente – se não quisermos dar uma resposta antipática – de obrigar a revelar opções pessoais. Percebo que não haja malícia nos interrogantes. São vítimas inocentes, levadas pelo impulso que parece ter tomado conta de todos, preocupados com a prole alheia.
A evolução dos tempos conduziu a agregados familiares minimalistas. É que há quem opte por não ter filhos. Pelo andar da carruagem, qualquer dia serão os novos ostracizados pela moral familiar que se vai erguendo. Não seria surpresa se os frenéticos legisladores socialistas, Europa fora, inventassem penalizações para casais que não contribuem para o imperativo social da constituição de prole. E assim como começam a surgir prémios para a natalidade, que sanções fossem passadas à forma de lei para quem não concebesse filhos: impostos mais elevados; penalização na taxa de juro do crédito à habitação; descontos mais elevados para a segurança social, afinal o contributo indirecto (mas forçado) para resolver a crise demográfica; no limite, a suspensão do direito de voto. Tão imaginativos estes socialistas, que não é de excluir nenhuma hipótese. Até, quem sabe, internamentos compulsivos onde serão ministrados cursos de persuasão para as virtudes de ter, e muitos, filhos. Uma espécie de lavagem ao cérebro.
O problema é que esta “promoção da natalidade” é um eufemismo. Mascara a atitude de cordeiro manso, sem que as pessoas percebam que há na interrogação algo de intrusivo. E sem que percebam que ter filhos não é uma decisão leviana, como comprar uma mercadoria qualquer. Só me espanta que não haja discernimento do contra-senso: o que é feito do bem-estar da numerosa prole que haveria de nascer se todas as interrogações se reproduzissem num impulso de gestação? Se o tempo para dedicar aos filhos escasseia, sintoma de uma doença da modernidade que nos deixa reféns do trabalho; se o dinheiro mingua, e o milagre da multiplicação dos pães só está ao alcance dos sortudos ou dos que vão por caminhos duvidosos. Queremos fabricar filhos sem conta e dar-lhes condições de bem-estar que estão longe daquilo que eles merecem? É que me parece que isso significa retrocesso civilizacional, um egoísmo social inaceitável.
(Em Portsmouth, Inglaterra)

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