10.8.07

Um caldo de cultura


A praia está apinhada. A preia-mar encolheu o areal. Há um ajuntamento de pessoas e toalhas excessivo, uma incongruente densidade demográfica na areia. Quem chega mais tarde procura um espaço, um lugarejo que seja entre a acumulação de toalhas e corpos. Farejam o espaço e descobrem uma magra faixa de areia onde julgam caber os pertences. Que são espalhados no areal, acomodados com uma precisão cirúrgica. Fica a toalha da extremidade a menos de meio metro do vizinho – do vizinho que quando chegou ainda era a manhã temporã, areia bastante para estender as toalhas. Não agora, que o ajuntamento e a maré alta impõem o acotovelamento dos veraneantes. Intimidade forçada, com a vizinhança não desejada a acampar quase em cima dos meus joelhos.

Acossado pela companhia dos desconhecidos, revejo testemunhos que certificam que férias assim podem ser um desassossego perene. Não que vá ao exagero de censurar, de permeio com a chacota tão típica de quem se julga penhor da superioridade moral, a horda que por Agosto se mete à estrada e enxameia a costa algarvia. Pacheco Pereira foi o juiz que sublinhou a curteza de vistas da turba que desagua no Algarve.

Ainda que caia na tentação de lhe dar razão, desprendo-me do juízo censório porque nele há o travo de reprovação que encobre ressentimento mal amanhado. Prefiro ver com os meus olhos. Sentir na carne os sinais deste caldo de cultura espalhados ao longo da costa algarvia. De acordo com o adágio, a necessidade é mentora do engenho: se a praia e águas relativamente tépidas são ingredientes do remanso estival, a costa do Algarve é o que sobra da geografia nacional a um turista remediado. Suportando os custos que os Pachecos Pereiras denunciam do alto da cátedra. Será o mal menor, até o ramerrame repetitivo das estadias algarvias passar do limiar do cansativo.

Quem arriba nos derradeiros dias de Julho sente a diferença quando entra o Agosto. A diferença entre muita gente e uma multidão que, adivinho, só pode fazer férias em Agosto (que não há mês pior para veranear). A praia empilhada de corpos em pré-bronzeamento é o sintoma que grita aos ouvidos de cada turista que busca o sossego. O melhor é tirar as barbas de molho. O sossego, só no castelo da solidão, se por acaso o alojamento merecer a sorte de um local tranquilo e de vizinhança que não chegue embriagada, e barulhenta, quando a madrugada está quase a dar lugar à manhã bonançosa. As curtas estadias na praia, por mais matinais que sejam, esbarram na afluência incessante de pessoas que preferem não andar mais cem metros e encontrar um pedaço de areia sem ajuntamento de corpos. Ou comodismo, amizade à força, até uma certa intimidade, a ver pelos menos de cinquenta centímetros que a toalha do vizinho ficou estendida à minha frente.

Não sei se em férias haja quem desligue os neurónios. Ou se, permanecendo a matéria encefálica activa, haja quem não se importe de partilhar uns centímetros de areia com o veraneante do lado, conhecido de lado algum. Porventura isto explica traços da idiossincrasia nacional. A tendência do povo para enxamear centros comerciais. Ou como o povo sobrelota transportes públicos e prossegue o caminho sorridente, sabendo que o odor corporal exalado pelas pessoas que se ensanduicham é o lenitivo para o dia que acaba de começar. Há uma versão alternativa, mais inacessível ao comum dos mortais, mas que todavia vem perfumada com a mesma essência: a luta de galos entre dois banqueiros pelo poder no “maior banco privado português” (certeza da imprensa). Uma luta por território. Ambos querem ter só para si um pedaço de terreno, condição necessária para a afirmação do poder. Bem vistas as coisas, os dois banqueiros que oferecem tão triste espectáculo (talvez, uma iniciativa privada à imagem da santa terrinha que somos: medíocre) serão a antítese dos veraneantes que partilham cada centímetro quadrado de areal algarvio. Nestes, a convivência (forçada) é tanta que quem estende a toalha em terreno quase ocupado aceita a intimidade estival. Os banqueiros, ao contrário, seriam incapazes de ficar separados por cinquenta centímetros na praia – ou em qualquer lugar, a crer no ódio visceral que nutrem reciprocamente.

Como as férias também cansam, hoje o derradeiro dia de visita à praia. O derradeiro dia para a provação de indesejáveis companhias que quase se estendem em cima da minha toalha. É mais fácil fugir do Algarve apinhado: é só emalar os pertences e regressar a casa. Impossível é fugir do lamacento país que desfila com a complacência dos medíocres. Quando são os medíocres os actores principais, ou se segue o exílio ou o refúgio onde o triste espectáculo não possa ser assistido.

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