23.7.07

Um excurso abstencionista


Esta demissão dos cidadãos em relação às suas responsabilidades deveria ser sancionada (...). Trata-se de um gravíssimo sinal de desdém pela democracia”. Inês Pedrosa, Única/Expresso.

É quando apetece ser abstencionista com mais força. Quando sou esbofeteado por verdades axiomáticas com esta, assoma à superfície a vontade indomável de ser mais um entre os ausentes das mesas de voto. É por coisas destas que fujo das esquerdas a sete pés: auto-intitulam-se campeãs da liberdade, mas não basta o registo histórico para caucionarem o papel de penhores da liberdade quando, no presente, impõem comportamentos que não merecem desvios, sob pena de severa punição. Assim temos as esquerdas fautoras de atropelos às liberdades.

Aos que se incomodam tanto com a crescente abstenção, convém que saibam que o voto compete a quem o deposita. Na minha esfera de liberdade individual inclui-se, entre tantos outros aspectos, o livre arbítrio para fazer com o voto o que bem me apetecer. Se voto em A, B, C ou D, por mais obnóxias que sejam as propostas eleitorais; se me recuso a colocar a cruz num dos candidatos, pondo o boletim de voto à mercê de um escrutinador que, à socapa, inscreve nele a cruz no partido da sua conveniência; se decido não comparecer na eleição, engrossando o maior “não partido” (o da abstenção) – são decisões que pertencem ao meu íntimo, decisões que não admito que alguém questione. Sob pena de também questionar o voto de quem se incomodar com o meu abstencionismo militante. Inês Pedrosa não gostaria que alguém a chamasse ignorante por ter votado em quem votou.

A frase da escritora é de uma gravidade que, essa sim, merecia ser sancionada. A frase merece ainda outra tarefa – ser dissecada. Primeiro acto: a abstenção é uma “demissão dos eleitores em relação às suas responsabilidades”. Enquanto o voto for um acto individual, não vejo como este arremedo de responsabilidade colectiva se sobreponha à responsabilidade individual. Inês Pedrosa revela desconforto com a taxa de abstenção espectacularmente elevada. Fazendo coro com a classe política, sacode a água do capote. A culpa mora sempre ao lado, ainda que ela habite na nossa casa; que é como quem diz, não lhe ocorre diagnosticar que as causas da abstenção galopante poderão estar no descrédito dos políticos e no descontentamento dos cidadãos com o processo político.

Quando a esmola é muita, o pobre desconfia. Tantos eram os candidatos à câmara de Lisboa que as pessoas nem souberam quem escolher. Poderia lá estar essa grande esperança nacional, que acabou por vencer embrulhado num sucedâneo de União Nacional. Ou até a arquitecta Roseta, ao gosto de Inês Pedrosa, agora candidata independente, como se alguém que sempre viveu abraçada ao partidarismo possa aparecer, com um golpe de magia, com a capa de “independente”. Nada disso consegue afastar os ventos da fraca qualidade dos que se ofereceram para presidente do município lisboeta. Eu continuo a achar que o voto não é, não pode ser, a escolha do mal menor. Se entre os candidatos todos são maus, mesmo muito maus, temos que aplicar a cruz naquele que for o menos mau, só para sobre nós, eleitores, não recair o opróbrio da “demissão das responsabilidades”? Escolher quem é mau é compatível com a consciência? Não, pelo menos no meu caso.

Segundo acto: a demissão dos eleitores “deveria ser sancionada”. Como se fosse crime de lesa-majestade. Como se votar, para além de dever, não fosse direito. E um direito que precede a qualidade de dever. Porventura Inês Pedrosa tem uma poção mágica para sonegar a crise do regime e do processo político. A poção mágica consiste na ilusão estatística: para acabar de vez com os malefícios da abstenção, obrigue-se o povaréu a ir votar, sob pena de cair sobre as ovelhas ranhosas (os abstencionistas) o cutelo de uma sanção pesadíssima. Três comentários: repito, o direito de voto precede a faceta de dever; segundo, eis a democracia em todo o seu esplendor, a democracia musculada de que as esquerdas são garbosas patrocinadoras, que altera a ordem dos factores e entroniza o voto como dever antes de direito; terceiro, que sanção vai na cabeça iluminada de Inês Pedrosa? Prisão? Perda de voto no seguinte acto eleitoral? Uma multa pesada, como na Bélgica e na Austrália?

Terceiro acto: a escritora é da opinião que a abstenção é o cancro da democracia, pois a democracia existe para os cidadãos e estes, enquanto abstencionistas, manifestam “um gravíssimo sinal de desdém pela democracia”. Este argumento morre à nascença, se recordar que antes de ser uma obrigação, votar é um direito – e da esfera individual de cada eleitor. Cansam-me estes moralismos colectivos, como se tivéssemos que ir em manada, todos pelo mesmo caminho, o caminho iluminado pela candeia dos predestinados que nos pastoreiam. Estou em paz com a consciência de cada vez que me ausento das mesas de voto. E não admito que alguém, seja quem for, do alto da sua tão elevada moralidade (que deve ser superior à dos hediondos abstencionistas, portanto) sentencie que quem se abstém desrespeita a democracia.

Só faltou à D. Inês Pedrosa rematar o diagnóstico desta maneira: os que se abstivessem deviam ser riscados para sempre dos cadernos eleitorais. Seria a punição pelo desdém pela democracia, pois mostravam não serem merecedores da democracia. Só não sei se o acto que se segue é ostracizar quem vota mais à direita, porque só as esquerdas é que são sensatas.

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