10.7.07

S. Fermín, ao contrário de Hemingway


Por estes dias amanhecem largadas de touros em Pamplona. As célebres festividades de S. Fermín atraem multidões a Navarra, na celebração da tradição com touros a servirem de bodo no festim do povaréu. Que traja de branco apenas tingido por um lenço vermelho, o ténue chamariz da fúria da manada que cavalga as ruas escorregadias pela humidade matinal pamplonense.

A multidão apinhada; os mais bravos acotovelam-se nas ruas, à espera da cólera taurina que irrompe pelo caminho que desagua na praça de touros; os mais curiosos, a quem a destemida tempera se ausentou, assistem em lugares seguros à correria ensandecida dos touros atrás dos corajosos que, esbaforidos, perseguem o registo imaculado do corpo sem feridas. Às vezes, a largada dura pouco tempo, nada mais que um par de minutos. É quando a manada vai até à praça de touros sem percalços, sem cair numa esquina traiçoeira, sem haver uma rés que se perde da manada, distraída com um aventureiro que se aproximara demais, sem nenhum dos touros colher um valente mas inexperiente folgazão que leva cicatrizes para contar de regresso a casa.

Outras vezes, o caos é semeado nas ruas de Pamplona. Os animais enfurecidos, ou apenas desorientados com tamanha algazarra, detêm-se, inflectem a marcha e tornam o festim no desespero dos foliões. Uma arremetida de um touro acerta num incauto destemido que voa, destacando-se da multidão que permanece de pés colados ao solo. Se acontece cair junto do touro, a segunda investida pode ser trágica se o touro se debater com o corpo agachado e espetar uma haste seccionando artéria vital. As largadas de touros levam uma contabilidade de mortos e estropiados que não cerceia a sagração ano atrás de ano.

Hemingway celebrizou nos seus escritos as festas de S. Fermín. O escritor experimentou as sensações vertiginosas de correr no meio do ajuntamento à frente dos touros desarvorados. Deixou testemunho da bravura dos homens que se entregam às ruas escorregadias de Pamplona e arriscam o corpo, a vida até, na fuga aleatória da manada ciosa de investir contra o primeiro corpo trajado de branco que fique ao alcance das hastes pontiagudas. Compreendo o esforço antropológico, que explica o festim pelo ângulo da tradição. As tradições ancestrais são explicação fácil para diversas exibições que se furtam ao racional. Há muito quem faça a sagração de celebrações populares invocando a tradição e a exigência dela ser respeitada, ou faltamos à homenagem de que os nossos antepassados são penhores. É uma explicação fácil e ao mesmo tempo estulta. Como se a tradição fosse um prolongamento da fé religiosa que nunca se questiona por ser matéria dogmática.

Para além da homenagem ao legado dos antepassados, não vejo maneira de perceber o que leva a horda a perfilar-se diante do caminho pisado pelos touros. Decerto haverá uma louca irracionalidade a percorrer o sangue fervente da turba, uns pelo dever de sagrar a tradição, outros pela adrenalina do evento, uns ainda pela devoção à tauromaquia, que assim podem por uns instantes ser artistas do espectáculo e não apenas seus espectadores. E seguem em apressada correria, no meio do caos em que todos se atropelam quando um touro se aproxima demais, no papel das vacas malhadas que vêm para a arena indicar o caminho da saída ao teimoso touro. A multidão vestida de branco é o isco perseguido pela manada, cada vez mais encolerizada pelo burburinho que se junta às pateadas da multidão na calçada calcorreada em desatino por touros e homens.

Confesso a atracção pelas largadas de S. Fermín. Não arroteio a cientificidade antropológica, que procura os sedimentos da tradição. Nem as explicações psicológicas que desbravam as razões insondáveis da mente dos destemidos à frente da manada. Descarto até os ensaios sociológicos, que explicam o comportamento do grupo nas festividades. Em vez disso, deleito-me, espectador ocasional das largadas, com o destempero da horda quando um touro se acerca, como se comprova que nesses momentos vale o lema “cada um por si”, prova inequívoca de que somos todos individualistas. E confesso o gosto perverso de ver alguns afoitos arremessados pelo ar, em funestas cambalhotas desenhadas uns metros acima das cabeças dos demais, até tombarem inertes no calçada pedregosa. Por um momento que seja, haja honra na tauromaquia ao permitir igualdade de armas entre touros e homens.

3 comentários:

ana v. disse...

"(...)não vejo maneira de perceber o que leva a horda a perfilar-se diante do caminho pisado pelos touros. Decerto haverá uma louca irracionalidade a percorrer o sangue fervente da turba (...)".

Acho que essa louca irracionalidade, semelhante à de muitos outros desportos radicais e quase suicidas que são cada vez mais procurados, é uma forma desesperada de nos sentirmos vivos neste mundo em que a alucinação geral impera (basta assistir a um qualquer telejornal). Os motivos sociológicos são óbvios, e explicam também esse seu confessado e sádico prazer em assistir ao espectáculo, torcendo para que haja sangue. Verdade?

PVM disse...

Não é sadismo, nem prazer de ver sangue (substância que me repugna). É só o prazer da vingança taurina, com os bichos a atirarem os palermas pelo ar. Se estes caem bem ou mal, ensanguentados ou não, já não me interessa.
PVM

ana v. disse...

... que lhe dá mais prazer a si do que aos touros, para quem tudo é instinto apenas.
Mas não se zangue: todos nós gostamos, em vários graus da escala (mesmo os que não o confessam) de presenciar a desgraça ou o ridículo dos outros. Se não fosse assim, porque nos riríamos quando alguém se estatela no chão?

ana